CLÁSSICOS

Lacan, Glover, a toxicomania e a drug addiction

Lacan, Glover and drug addiction

 

Claudio Spivak1

(Buenos Aires, Argentina)

 

 

Resumo: No Seminário VI de Jacques Lacan, encontramos uma das poucas menções que ele faz às toxicomanias. Esta se realiza a partir de uma crítica a dois textos de Edward Glover. No presente artigo, se rastreiam as críticas a estes textos. Em seguida, se apresenta uma semelhança entre estes textos, assim como se apontam algumas precisões em torno da drug addiction e das adições.
Palavras chave: Lacan, Glover, toxicomania, drug addiction, adição
Abstract: In Jacques Lacan's VI Seminar, we find one of the few references he makes to drug addiction. These are accomplished from a critic to Edward Glover's two texts. In the present article we follow the critics to these two texts and then, we present the similarities of these articles and we make some precisions around drug addiction and addictions.
Keywords: Lacan, Glover, drug addiction, addiction

 

Claudio Spivak

Lacan leitor: Nos Escritos, conferências e seminários que conhecemos de Lacan, as menções às toxicomanias e ao alcoolismo aparecem como marginais ou laterais. Geralmente surgem em algum momento do desenvolvimento de outra ideia principal e poucas vezes merecem alguma reflexão mais extensa.


Mesmo assim, embora escassas, essas referências já se encontram em sua tese de doutorado e voltaremos a encontrá-las nos escritos prévios ao seu ensino, assim como nas últimas apresentações de pacientes que realizará em Saint-Anne.  Atravessam suas leituras e suas reflexões em um período de cinquenta anos. 


No seminário "O desejo e sua interpretação" encontramos uma destas poucas menções em relação à leitura critica de um texto de Edward Glover.


Lacan leitor de Edward Glover: A crítica a Glover se produz na parte que Jacques Alain Miller denominou a dialética do desejo. A encontraremos nas lições de 13 de maio, de 17 de junho e 1 de julho. Nestas, Lacan desenvolverá seu comentário ao texto "A relação entre a formação de perversão e o desenvolvimento do sentido de realidade". Na mesma aula, de 17 de junho, se refere a outro texto de Glover "On the aetiology of drug addictions", de 1932.


Se Lacan convoca os textos de Glover é para tomá-lo como o melhor exemplo de certo desvio em relação ao desejo, de alguns teóricos da psicanálise. Critica a ideia de um acordo pré-formado entre o desejo e a realidade. Também, certa ideia forjada em relação a um desenvolvimento subjetivo e de fases libidinais, um desenvolvimento acabado, ou ao menos esperado, a partir de uma convergência suposta até a maturação. O suposto é que "a tal forma da libido corresponderia tal estrutura do ego que especificaria tal tipo de relação com a realidade". Em síntese, Lacan critica apoiando-se nos textos de Freud e na clínica, as concepções referidas ao desenvolvimento genético do desejo, a experiência de conhecimento do objeto e a ideia da harmonia entre o sujeito, desejo e realidade. Será neste contexto que fará menção a "o que nós chamamos toxicomania".


Glover, a ordem e a série: "A relação entre a formação-perversão e o desenvolvimento do sentido de realidade" é um texto de leitura complexa.  Lê-se ali o esforço de Glover para obter um ordenamento diacrônico, em fases paralelas de desenvolvimento da libido, o eu, a realidade e sua correspondente psicopatológica.


No texto, Glover se refere ao desenvolvimento do sentido de realidade. A partir da orientação que lhe provê este sentido de realidade, mediante um estudo minucioso, tenta ancorar os sistemas de realidade em voga nas distintas fases mencionadas acima.  Este sentido de realidade se organiza também em estádios. Aí se coloca como seguidor de Ferenczi, de quem nos diz, que se empenhou em correlacionar estádios do sentido da realidade com fenômenos psicopatológicos.


Sua perspectiva genética o remete a momentos primordiais da constituição do eu. O regulamento que propõe parte do primitivo. Assim retomará as fases pré-edípicas e relativizará a referência edípica. O regulamento se orienta pelo "sentido de realidade" e de acordo com a predominância respectiva da "introjeção primitiva" ou dos "mecanismos de projeção primitivos".


Com esta orientação, assinala a conveniência de ter mais investigações relativas a análise de crianças para comparar com o que é obtido na análise de adultos. Acrescente-se a isso ampliar a investigação analítica. Considera que até o momento o interesse recaiu sobre a etiologia das neuroses e das psicoses, ficando fora as anomalias sociais ou sexuais, entre as quais coloca a drug addiction e a perversão.


A partir daí nos recorda que já havia proposto uma classificação em "On the etiology of drug addiction". Dessa classificação havia surgido um ordenamento que o habilitou a por em série a neurose e a psicose, interpondo entre ambas não só a psicose borderline mas também estados "transitórios" de adição às drogas. A adicção transitória às drogas ficava classificada, então, entre as paranoias e as formações de caráter obsessivo. Orientado pela introjeção e projeção primitiva, destaca que "nas drogadições os mecanismos de projeção estão mais localizados e disfarçados que nas paranoias, mas assim ainda são mais fortes que nas desordens obsessivas."


O texto conduz a resolver uma dificuldade classificatória. Isto a partir do surgimento de perversões e de fenômenos fetichistas que acompanham comumente o uso de drogas. O problema seria como localizar a perversão em seu regulamento. Glover o consegue às custas de fracioná-la e fazê-la surgir em cada etapa de suposto desenvolvimento, desde as mais primitivas às mais próximas do Édipo. Deste modo é levado a colocá-las como auxiliares e como remendo das falhas do sentido da realidade.


Neste ponto a perversão transitória aparece quando algo fracassa na prova de realidade, quando aparece um rasgão na realidade, e como defesa ante a possibilidade de uma suposta psicose. Já se havia referido ao uso defensivo que pode ter a droga, para manter o sentido da realidade na psicose.

 

O pensamento de Glover, em sua tentativa classificatória, recai em alguns paradoxos. Lacan proporá como solução, que não há dedução correta dos tipos clínicos senão na condição de admitir a função significante. Essa função não implica a relação do sujeito com seu entorno ou com realidade alguma, exceto da realidade e dimensão da linguagem.


Glover e a drug addiction: A crítica que Lacan faz em relação aos paradoxos do texto de Glover implica em um desalento à leitura. Sem dúvida, isto não deveria ser assim. Os paradoxos que nos indica são em torno da concepção genética de Glover. Ao mesmo tempo nos diz ser um dos melhores autores de psicanálise, alguém perspicaz, preocupado com uma correta articulação da experiência analítica e alguém que se esforçou por inventariar as noções e conceitos que utilizamos. Se Lacan diz isto é porque o leu.


No campo de investigação da psicanálise aplicada às toxicomanias e alcoolismo, Glover se propõe como alguém que inventariou os autores clássicos e nos mostra os achados e dificuldades destes. Além do mais, sua experiência clínica neste campo o conduz por caminhos iluminadores; claro está, com uma orientação que dista da lacaniana.


Sua tentativa de localizar uma etiologia da drug addiction o conduz a uma serie de interessantes achados. Por exemplo a distinção que estabelece entre o efeito do tóxico e o uso que faz quem consome esse tóxico. Isto lhe permite orientar-se em relação à questão da droga e deixa à mostra o aspecto compulsivo que subjaz ao consumo, compulsões que se replicam em outras atividades como a comida, a leitura e outras.


Eric Laurent nos assinala que em Glover encontramos aquele que primeiro notou que qualquer coisa pode funcionar como suporte da adição, assim como nos apresenta a dificuldade de dar ao tóxico um lugar definitivo em qualquer classificação. Também que a drug addiction não se refere a um tipo clinico em particular. Em Glover se lê que, a nível da pulsão, o oral e qualquer circuito pulsional pode estar envolvido no tóxico. Sabemos, por exemplo, que a cocaína pode ser injetada, fumada, aspirada ou lambida. E isto pode acontecer em diversos indivíduos como em um só.


Não menos interessante é a perspectiva que nos propõe Glover em relação a conceber o uso defensivo da droga ou os usos relacionados com o supereu e o castigo.


Vale ressaltar uma menção.  Mostra que, dadas as condições psíquicas adequadas, qualquer substância pode ter "função" de droga.

 

Bibliografia
Glover, E. "ON the Aetiology of Drug-addiction", International Journal of Psychoanalysis, July 1932, vol 13
----------- " The relation of perversion-formation to development of realitysense". International Journal of psychoanalysis, October 1933, vol. 14
Lacan, J. Seminario 6: el deseo y su interpretación – 1 ed. – Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2014
Laurent, E "Respuestas a la Lúnula", Em Revista Virtual de Psicoanalisis la Lúnula, n 3 Oralidad all inclusive. Córdoba, 2014.

 

Tradução: Lenita Bentes
Revisão: Oscar Reymundo

                                                      

1 Psicanalista Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana e da Associação Mundial de Psicanálise.