CLÁSSICOS

Para uma investigação sobre o gozo autoerótico

For an investigation into autoerotic jouissance

 

Jacques-Alain Miller (Paris, França)

Analista Membro da Escola (AME) da École de la Cause Freudienne (ECF). Membro e Fundador da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)

 

 

Jacques-Alain Miller

Resumo: O texto localiza a especificidade do gozo toxicomaníaco, gozo que não passa pelo Outro, e tem como característica o autoerotismo. O recurso à droga é colocado como uma saída para a angústia frente ao desejo do Outro.
Palavras-chave: toxicomania, gozo, objeto droga
Abstract: The text shows the specificity of the jouissance of the drug addict, which does not pass through the Other and is characterized by self erotism. The resourse to the drug is proposed as a wayout for anxiety, in face of the desire of the Other.
Keywords: Addiction, jouissance, object drug.

 

Eis-me aqui na posição de agradecer àqueles que aceitaram de bom grado responder ao convite do Campo freudiano e do Departamento de Psicanálise, por intermédio do GRETA.


Eu poderia ater-me ao que foi dito nesta Jornada: se digo algumas palavras mais, elas deveriam ser submetidas à discussão, como tudo o que foi dito até agora.

 

O falo em questão

É certo que esse momento de encerramento não é de maneira alguma um momento de concluir, que esse encerramento não é uma conclusão, ele é apenas uma suspensão, pois essa Jornada nos deixa em suspenso.


O que permite concluir, de uma maneira geral? É sempre uma articulação lógica, e isso vale também para a clínica psicanalítica, na medida em que ela se articula - se é freudiana – às funções de uma categoria que vem indiscutivelmente de Freud – mesmo se ela esperou Lacan para ser formalizada – a saber, o falo. Pois a psicanálise só atinge o sujeito na medida em que ele tem relação com essa categoria, na medida em que ele se inscreve na função fálica, segundo modalidades diversas.


Essa categoria está claramente articulada em Freud, pois ele distingue, à parte do registro do fim sexual, o do problema sexual, quer dizer, o problema da castração na medida em que concerne um saber, um conhecimento – o termo é de Freud – sobre o sexo. Tratando-se da toxicomania, essa categoria freudiana do falo, aparece ou não como operatória?


Há aí uma dificuldade. Seu signo é que, comumente, na cura do toxicômano, se fala de desmame e não de castração. Acredita-se poder efetuar essa operação de renúncia à droga pela fala, ou o desmame da – ou das – substâncias tóxicas é a condição, prévia, da cura pela palavra?


A segunda opção é a que nos foi apresentada por M. Olievenstein. Do ponto de vista do Campo freudiano, não podemos dizer, com efeito, que o recurso à substância tóxica é precisamente feito para fechar ao sujeito o acesso ao problema sexual?

 

Um real que insiste

É certo que a toxicomania impõe ao psicanalista a modéstia. E me parece que a maior parte dos psicanalistas que assistiram a essa Jornada vieram aprender com aqueles que, mais regularmente do que eles, se ocupam de toxicômanos.


Se Lacan convidava os psicanalistas a não recuar diante das psicoses, é porque o psicótico é demandante em relação à psicanálise. Mas o toxicômano o é? E se o fosse, não seria antes o analista que recuaria frente à toxicomania? Com efeito, a toxicomania apresenta ao psicanalista um sintoma sobre o qual os efeitos de verdade da fala podem parecer sem pega, um sintoma, portanto, que obriga a dissociar as estruturas de ficção da verdade e um real que resiste ou que insiste.


Resta que a droga dá lugar a uma autêntica experiência para o sujeito, que nós não poderíamos colocar em dúvida, e que produziu seu próprio vocabulário, suas próprias expressões. Ela não é, no entanto, uma experiência de linguagem, mas ao contrário o que permite um curto-circuito sem mediação, uma modificação dos estados de consciência, a percepção de sensações novas, a perturbação de significações vividas do corpo e do mundo.


Vimos, aliás, com a exposição de Michel Reynaud, que existe inclusive uma zona de indiferenciação, de recobrimento entre o tóxico e o terapêutico. Ele estudou casos que poderíamos chamar de verdadeiras terapeuticomanias, cuja referência poderia bem ser o pharmakon analisado por Davida, lembrado por Dugarin, que está no centro da obra recente de Sylvie Le Poulichet.


Essa Jornada juntou o toxicômano e o terapeuta. Ela deu a palavra aos terapeutas, que falam de bom grado, mais que os toxicômanos; ela reuniu homens desse campo, pois são eles que têm direito à palavra, uma vez que são eles que autorizam o Campo freudiano a interessar-se pela toxicomania.

 

O objeto droga

Mas a partir da experiência analítica, o que podemos dizer sobre a toxicomania? Começamos a vê-lo hoje: os psicanalistas ressaltam que algo faz obstáculo à entrada e à manutenção do toxicômano em análise. Trata-se então de um saber negativo. Mas como articulá-lo em algumas questões que poderíamos encontrar a ocasião de retomar?
A primeira dessas questões se refere ao próprio termo de toxicômano. Em que medida é um atributo clinicamente válido do sujeito, se ele é sujeito da palavra? Eu teria formulado essa pergunta, de bom grado, ao Prof. Bergeret: a toxicomania é uma categoria clínica bem formada? E em que sentido? Como ela se articula às estruturas freudianas? Não seria preciso distinguir a toxicomania como categoria clínica e o objeto droga, para retomar uma expressão que foi utilizada aqui? O objeto droga na medida em que pode encontrar-se inscrito em diferentes estruturas clínicas, neurose, psicose e perversão?


Talvez encontre aí seu lugar o dito de Lacan, lembrado por Bernard Lecoeur e Hugo Freda: “A droga é o que permite ao sujeito escapar ou romper seu casamento com o pequeno pipi”. Não é uma definição da toxicomania, mas uma tentativa de definição da droga enquanto tal. Talvez se deva dar todo o seu valor a essa distinção, talvez, na experiência analítica, coloquemos menos a questão da toxicomania que aquela da droga em sua relação ao sujeito. Por isso, considero que não está estabelecido que a toxicomania possa entrar enquanto tal no Campo freudiano, mas somente sob as espécies – talvez toquemos aí um dos limites da psicanálise – da questão do objeto droga em sua relação ao sujeito.


Um objeto causa de gozo

Desde então, a droga aparece como um objeto que concerne menos ao sujeito da palavra que ao sujeito do gozo, na medida em que ela permite obter, sem passar pelo Outro, um gozo. A experiência toxicomaníaca parece bem feita, com efeito, para justificar o uso que fazem alguns entre nós do termo de gozo enquanto distinto daquele de prazer. O prazer é sempre coordenado à noção de uma harmonia, de um certo bom uso, inclusive de uma sabedoria – assim Michel Foucault podia falar do uso dos prazeres. Ora, nós vimos que, mesmo a psiquiatria soviética, da qual nos falou Claudio Ingerflom, encontra, quando ela tenta apreender a toxicomania, o paradoxo desse curioso hedonismo, desse desejo hipertrofiado de ter prazer. Consequentemente, parece-me que a experiência toxicomaníaca justifica que se introduza o termo de gozo para qualificar o que, nesse caso, se situa mais além do princípio do prazer, o que não está ligado a um temperamento da satisfação, mas, ao contrário, a um excesso, a uma exacerbação da satisfação que conflui com a pulsão de morte.


Assim, a fórmula de Markos Zafiropoulos, “o toxicômano não existe”, certamente se justifica, se designamos assim o fato de que a categoria clínica da toxicomania não está bem formada. Mas, não é menos verdade que com o nome de toxicômano se designa um sujeito que entrou em uma certa relação com a droga, e que consente em se definir cada vez mais, a se simplificar ele mesmo, nessa relação com a droga.


Desde que não neguemos a especificidade dos fenômenos toxicomaníacos, do ponto de vista psicanalítico, não deveríamos dizer que a droga se torna o verdadeiro parceiro, o parceiro essencial, e mesmo exclusivo do sujeito, um parceiro que lhe permite fazer um impasse, em relação ao Outro, e em particular, em relação ao Outro sexual?


A partir daí, poderíamos ser tentados a dizer que a droga proporciona ou produz um excedente de gozo, um mais-de-gozar impossível de desconhecer, sob sua face de estado dito de falta, de falta de gozo. Em consequência, poderíamos também ser tentados a fazer da droga um objeto a no sentido de Lacan. Mas estou totalmente de acordo com o Dr. Magoudi para dizer que não se pode, em nenhum caso, fazer da droga uma causa do desejo. No máximo, podemos fazer dela uma causa de gozo, um objeto da demanda mais imperiosa, e que tem em comum com a pulsão que ela anula o Outro – a droga como objeto dá acesso a um gozo que não passa pelo Outro, e em particular pelo corpo do Outro como sexual.


Insubmissão ao serviço sexual

Na experiência analítica, encontramos correntemente o recurso à droga como saída para a angústia, como saída para a angústia frente ao desejo do Outro, a fim de desviar-se dele. Dizer que, com a droga, se trata de um gozo que não passa pelo Outro é um ponto de referência muito frouxo, que seria preciso apreender melhor, começando por opor esse gozo ao gozo homossexual, que mobiliza o corpo de um outro, com a condição que ele seja o mesmo, que, portanto, passa pelo Outro, mas com a condição de reduzi-lo ao mesmo. É preciso acrescentar que isso só vale para a homossexualidade masculina, aquela que exige que o corpo do outro apresente um traço particular, o de possuir o órgão. Desde então, podemos falar de desmentido da castração como princípio de perversão, mas isso supõe que o problema sexual tenha sido colocado pelo sujeito como tal, e que ele tenha encontrado essa solução. Em primeiro lugar, teríamos então que contrastar o gozo que não passa pelo Outro e o gozo homossexual.


Em segundo lugar, existe um outro tipo de gozo que não passa pelo corpo do outro, mas pelo corpo próprio – que se inscreve na rubrica do autoerotismo. Digamos que é um gozo cínico, que rejeita o Outro, que recusa que o gozo do corpo próprio seja metaforizado pelo gozo do corpo do Outro – e que permanece, na história, ligado à figura de Diógenes – que opera este curto-circuito realizado no ato da masturbação, que precisamente assegura ao sujeito o seu casamento com o pequeno pipi.


Dessa forma, sem dúvida, o cínico contraria a interdição que cai sobre o gozo e que é antes de tudo interdição do gozo autoerótico – ao ponto que se pode dizer que a interdição do incesto como interdição do corpo da mãe não faz mais do que metaforizar a interdição primordial do gozo autoerótico. Mas esse gozo, que passa pelo gozo fálico, é compatível com, e mesmo ocasionalmente exige, a manutenção do Outro imaginário na fantasia.


Assim, vemos talvez destacar-se a especificidade do gozo toxicomaníaco, que, com efeito, não passa pelo Outro, mas tampouco pelo gozo fálico. Lacan está, portanto, justificado em caracterizá-lo, antes de tudo, pelo fato de que ele “rompe o casamento com o pequeno pipi” – ele permite não colocar o problema sexual.


Por outro lado, um capítulo deveria ser desenvolvido, “Toxicomania e Psicose”. Philippe Sopena evocou aqueles que preferiram a toxicomania à psicose. É certo que, na toxicomania, não podemos falar de foraclusão enquanto tal porque na psicose, se há foraclusão da castração, ela retorna no real – em particular na paranoia, ao ponto que Freud pode dizer que o Édipo é demonstrado na paranoia.


A toxicomania é menos uma solução para o problema sexual do que a fuga diante do fato de colocar esse problema.


Se quiséssemos encontrar uma categoria onde colocar, face à foraclusão na psicose, a toxicomania, poderíamos talvez fazer apelo à insubmissão – a insubmissão, eu diria, já que Hugo Freda falou do serviço militar, ao serviço sexual.

 

Um mais-de-gozar particular

Dando um passo além daquele que consiste em problematizar a toxicomania a partir da experiência analítica, poderíamos interrogar-nos sobre o que a toxicomania mesma esclarece sobre o sujeito da fala.


Nada, com efeito, objetaria a dizer que aqueles que não são toxicômanos – e aqueles que não se entregaram duas vezes a essa experiência, como recomenda o Sr. Olievenstein – não se “injetem”, não sejam “lavrados” pela palavra. Pois existe um gozo da fala, ao qual nós estamos ligados – é por isso mesmo que fazemos tantos colóquios.
O que chamamos de destituição subjetiva, desde então, seria também o desmame do gozo da fala, e o final da análise, porque não, um “desligamento”. Mas evidentemente, a droga materializa ou substantifica esse gozo que não é um prazer, esse gozo que vale mais que a vida como função vital.


Por outro lado, se na análise temos a ver com um sujeito que joga sua partida em relação a um saber sobre o sexo, e a joga na fala – ao contrário, o que chamamos, talvez abusivamente, o sujeito da toxicomania é um cínico extremo. E compreende-se que a biologia molecular seja tentada a abordar a toxicomania a nível do órgão causa, isto é, do cérebro, fazendo um impasse quanto à relação ao Outro – a toxicomania certamente se presta a isso.


Entretanto, do ponto de vista da experiência analítica, não se pode manter que na droga a posição subjetiva está não obstante implicada? E aí, eu estaria de acordo com o imperativo do Dr. Carpentier, de um retorno à medicina do sentido – todo o problema sendo obter do sujeito que dê sentido, e em particular sentido sexual, à sua dependência. Ora, a toxicomania faz obstáculo a isso, pois na análise, o sujeito espera o objeto do sujeito suposto saber – e é o que estabelece a transferência – quer dizer que o objeto em questão, o mais-de-gozar, se sustenta fundamentalmente na palavra, enquanto na toxicomania, esse mais-de-gozar está aderido a um produto da indústria.
No fundo, o analista deveria ser um dealer da droga da palavra – essa problemática foi evocada pelo Dr. Olievenstein.

 

Desfazer a identificação

Deixemos de lado o fato que na realidade social, existe um Outro da droga, que se paga e a quem se endereça a demanda, pois esse Outro da droga, como o chamava o Prof. Bergeret, não tem de maneira alguma a solução do problema.


O acesso ao gozo da droga para um sujeito não foi sempre traçado pelo que lhe veio da palavra? Em sua origem, a escolha da droga não foi sempre condicionada pelo significante? Para essa pergunta, só há respostas particulares, caso por caso. Parece-me que a exposição realmente sensacional de Hugo Freda o mostrou, indicando uma saída, que se recortou com a de Marcos Zafiropoulos sobre esse ponto: em todos os casos, a possibilidade da análise passa pelo esforço para desfazer a identificação bruta ao “sou toxicômano”. Consequentemente, do ponto de vista da experiência analítica, tudo o que reforça essa identificação é contraindicado – é preciso que ela possa aparecer ao sujeito, não como necessária, mas contingente.


Não fiz mais do que estabelecer uma lista de questões, que, me parece, poderiam ser retomadas em uma Jornada próxima, para se fazer um balanço, depois de transcorrido um certo tempo para compreender.

 

*Texto de encerramento das Jornadas do GRETA (1989) – Groupe de Recherche et d’Études sur la Toxicomanie et l’Alcoolisme (“Clôture”, Le toxicomane et ses thérapeutes. Analytica 57, Navarin Éditeur). As modificações contam com a autorização do autor.

 

Tradução do francês: Elisa Alvarenga