TEXTOS TEMÁTICOS

Toxicomanias aplicadas às psicoses

Drug addictions applied to psychosis

 

Leonardo Scofield (Florianópolis, Brasil)
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).
Psychoanalyst. Member of EBP and WAP.

 

 

Leonardo Scofield

Resumo: Este artigo aborda possíveis efeitos terapêuticos das toxicomanias aplicados a desordens ocorridas em casos de psicose. A leitura de três recortes clínicos nos auxilia a localizar os modos singulares que cada falasser constrói, com a droga, para reordenar ou evitar a desordem na junção mais intima de seu sentimento de vida. Sob transferência, pode-se ter como orientação o que cada um inventa para nomear algo do gozo que inclua seu excesso.
Palavras-chave: toxicomania, psicose, gozo, droga
Abstract: This paper approaches the possible therapeutic effects of drug addiction to stabilize and avoid seizures in some cases of psychosis. The singular relation with the drug shown on three different clinical snapshots helps us to locate how each parlêtre shapes his relation with the drug to avoid the seizure in the most intimate life feeling, or to rebuild the pieces of a shattered self. Transference enables to name a jouissance including its excess and can be used as a guideline to deal with each case.
Keywords: Drug addiction, psychosis, jouissance, drug

 

Constatamos, em nossas práticas profissionais, grande incidência de toxicômanos cuja estrutura clínica desvela-se psicótica. Algumas abordagens tendem a fazer esta leitura como uma comorbidade e propõem como tratamento a abstinência da droga. A psicanálise lacaniana não compartilha desta orientação. A partir desta evidência clínica de que há uma relação entre as toxicomanias e as psicoses, permitimo-nos supor que haja uma tentativa, pelo ser falante, de tratar seus sofrimentos ocasionados numa estrutura psicótica através do uso de drogas.


Tomemos emprestado o termo “psicanálise aplicada” (LACAN, 1967/2003) à terapêutica (Miller, 2000) como uma referência para a investigação sobre as toxicomanias aplicadas às psicoses. Assim, pretendemos interrogar como alguns seres falantes podem fazer uso de drogas como uma tentativa de tratamento. Mas tratar de que? Do que Lacan apontou, a partir das psicoses, como “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565). Como o uso da droga poderia ser aplicado para reordenar a junção do sentimento de vida ou para evitar que esta junção se desordene?


Esta desordem é um índice da desamarração dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Ela é nítida nos fenômenos elementares da paranoia ou esquizofrenia, em que o real retorna lá onde o significante fálico foi foracluído. A desordem pode também ser manifesta por pequenos sinais de desconexão do falasser, entre sua experiência de gozo e as circunscrições que lhe são possíveis fazer no simbólico e imaginário. Por exemplo, em psicoses sem franco desencadeamento pode-se identificar a operatividade do Nome-do-Pai, como predicado (MILLER, 2008/2012, p. 409), sem, no entanto, que este significante desempenhe sua função metafórica operando como referência fálica. Desta maneira, podemos encontrar, nestes discretos sinais, índices de ruptura do nó entre os três registros.


Tomemos, de três vinhetas clínicas, orientações possíveis sobre a aplicabilidade terapêutica das toxicomanias às psicoses:


Distrair-se do corpo


João, 17 anos, se viu em um vídeo de celular fazendo um movimento estranho com a cabeça e desencadeou um delírio persecutório que lhe causou uma ruptura social radical. Segundo ele, todos sabiam que ele tinha um “tic”, movimento involuntário da cabeça para estralar o pescoço. Era “como duas borrachinhas se esfregando”, disse ele, o que lhe impunha a necessidade de realizar tal comportamento. A transferência com um analista e o uso de neurolépticos aliviaram seus sintomas e lhe permitiram, aos poucos, retomar alguns de seus vínculos sociais, prioritariamente com alguns colegas com quem fumava maconha. Em uma sessão com o analista, João precisou o que lhe permitia circular com mais frequência: “quando eu fumo um, eu me distraio do meu corpo, acho até que nem tenho o tic quando estou chapado”.


À condição de fazer uso da substância, o sujeito extrai de seu corpo sua atenção, minimizando a imposição de um corpo que se goza fora da circunscrição fálica possível. Esta é uma tentativa de tratamento que lhe permite não sucumbir ao corpo, fazendo recurso à maconha e aprendendo, sob transferência, a se distrair, a extrair o valor daquilo que o invade.

 

Sexo com cocaína


José, 35 anos, apresenta um discreto delírio persecutório relacionado à herança familiar e procura a análise por “estresse”. Ele se aposentou e passa o dia fumando maconha “para se acalmar” do “estresse” que lhe causam as “confusões familiares”. O que lhe perturba, no entanto, é o fato de não ter mais tido ereção com sua esposa, “logo agora que queremos ter um filho”, ele precisa. Em algumas relações extraconjugais e sob o uso de cocaína, ele diz ter “ótimo” desempenho sexual. Mas não pode repetir isto com sua esposa por inadmissão da mesma. José então lamenta-se: “mas eu só faço sexo com cocaína”.
Com a cocaína ele não terá herdeiros, não terá assim que se haver com a função simbólica de ser pai, o que ele evita pelo sintoma de disfunção erétil. Há ainda a possibilidade de ler o uso da droga como fuga diante do fato de se colocar o problema sexual (MILLER, 1989/2015, p. 7).

 

Do “merda” ao “dependente em recuperação”


Mário é usuário de drogas múltiplas há décadas, com certos períodos de abstinência intercalados por graves “recaídas”. Na tentativa de dar lugar ao gozo de seu corpo, disruptivo dos laços sociais, ele tenta nomear-se pela relação que estabeleceu com o uso de drogas. Sob o uso, ele se diz “um merda”. Mas não se trata de uma identificação ao significante dialetizável. Ele precisa ser recuperado pelo Outro, defecado na escória das ruas, destituído da possibilidade da fala, destinado ao estatuto de dejeto, de “merda”.


Enquanto “dependente em recuperação”, significante extraído dos grupos de Alcoólicos Anônimos, ele se mantém em vigília de seu corpo, de seus laços. Este significante, apesar de nomeá-lo em relação às drogas, permite-lhe experimentar uma espécie de falta, de perda a ser recuperada, relançando-o na perspectiva de que algo que o represente esteja no porvir das relações, pela fala que estabelece com os dispositivos de saúde e assistência social. Falta esta que, por vezes, se apresenta com insuportável, (LAURENT, 2003/2017) passando ao ato nas tentativas de nomear-se enquanto um merda. Poderíamos dizer que é pelo nome de “dependente em recuperação” que uma prótese imaginária pode dar a Mário uma precária identificação a um “fazer-crer compensatório” do Nome-do-Pai (MILLER, 2008/2012, p.410), com o qual ele mantém em ordem, provisoriamente, a junção de seu sentimento de vida?

 

Considerações finais


Certamente a relação de alguns sujeitos com as drogas, enquanto aquilo que permite a ruptura com o gozo fálico (LACAN, 1975/1981, p.119), pode agravar sua situação com um horizonte mortífero. Mas, assim como a literatura psicanalítica nos ensina e estes pequenos recortes clínicos demonstram, é possível fazer um uso terapêutico das drogas diante das rupturas ocorrentes em casos de psicoses.


A localização do gozo do corpo, sempre excessivo à significação, sem a prótese fálica que o significaria fantasmaticamente, para João não foi suficiente. Ele precisou de um recurso à substância para que este gozo fosse minimizado, permitindo-lhe, a partir da maconha, retomar minimamente uma ordenação na junção mais íntima de seus sentimentos de vida. Para José, transar com a cocaína o protege de se haver com um gozo do Outro sexo, sem precisar responder com a referência fálica da qual é desprovido. No caso de Mário, a identificação a um significante que nomeie para ele uma falta, lá onde ele se nomearia, em ato, enquanto objeto, tem função terapêutica para erguer novamente o corpo do qual ele não se apropria enquanto merda.


Para falarmos das toxicomanias aplicadas, podemos parafrasear Lacan ao referir-se à psicanálise, sem, é claro, estabelecer uma equivalência entre elas. Ele disse que “cada um sabe que a análise tem bons efeitos, que só duram um certo tempo. Isso não impede que seja uma trégua, e que é melhor do que não fazer nada” (LACAN, 1975/1976). As toxicomanias podem ser assim vistas como uma trégua. É exatamente a partir deste ponto que os analistas, orientados por seus desejos e pela psicanálise pura, tem a responsabilidade de sustentar a transferência com os falasseres toxicômanos e psicóticos em um tratamento que permita produzir, para além da droga, um enodamento singular entre o gozo do Um, sempre desmedido, e o Outro, sempre insuficiente.


 

Referências Bibliográficas:
LACAN, J., (1972/1978), Du discours psychanalytique. In: Lacan in Itália (pp. 32-55). Milão: La Salamandra.
LACAN, J., (1975/1981), “Sessão de encerramento da Jornada de Cartéis da Escola Freudiana de Paris, 13/04/1975”. Publicado em Pharmakon Digital 2, 2016.
LACAN, J., (1975/1976), Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines, in Scilicet, 6(7), Paris, Seuil.
LACAN, J., (1958/1998), “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na Psicose”. Em: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
LACAN, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar 2003b. p. 248-264.
LAURENT, E., (2003/2006), Os tratamentos Psicanalíticos das psicoses. In: Derivas analíticas. Revista Digital de psicanálise e cultura da Escola Brasileira de Psicanálise número 06 junho 2017. Disponível em: http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/tratamentos
MILLER, J.-A., (2008/2012), Efeito do retorno à psicose ordinária. In: A psicose ordinária, A Convenção de Antibes. Belo Horizonte, Scriptum.
MILLER, J.-A., (1989/2015), Para uma investigação sobre o gozo autoerótico. In: Pharmakon Digital 1, 2015.
MILLER, J.-A., “Les Journées de l’École de la Cause freudienne”, La Lettre mensuelle no 193, dezembro de 2000, pp. 1-5.