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The relation of perversion-formation to the development of reality-sense
Edward Glover[2] (Londres, Inglaterra)
Resumo: A investigação de Glover tem como objeto principal alguns termos frequentemente utilizados na literatura analítica, mas que são raramente definidos, notavelmente, o conceito de juízo de realidade na formação perversa. Um estudo minucioso é realizado na obra de Ferenczi, Abrahan, Klein, Federn, Ella Sharpe e outros na tentativa incessante de precisar ao máximo uma definição conceitual e sua aplicabilidade clínica.
Palavras-cshave: realidade, juízo de realidade, prova de realidade, toxicomanias, formação perversa.
Abstract: Glover’s investigation has, as a main object, some terms frequently used in analytical literature, but rarely defined, such as the concept of reality judgment in the perverse formation. A meticulous study is done in the work of Ferenczi, Abraham, Klein, Federn, Ella Sharpe and others, in the continuous attempt of precising, as much as possible, a conceptual definition and its clinical application.
Keywords: reality, reality judgment, reality proof, drug addiction, perverse formation.
Os termos de “realidade”, “juízo de realidade[3]” e “prova de realidade” são utilizados frequentemente na literatura psicanalítica, mas muito raramente definidos. Não existe por regra uma objeção séria para esta prática, mas quando os termos são em si mesmos a questão principal da investigação, algumas definições preliminares são inevitáveis. Existe certo risco em dar por suposta uma declaração muito rígida: no entanto, proponho adotar nesta ocasião a direção menos usual que consiste em definir provisoriamente estes termos antes de submetê-los à primeira investigação.
Deste modo:
O juízo de realidade é uma faculdade cuja existência inferimos a partir de examinar o processo da prova de realidade.
A eficiente prova de realidade é, para qualquer sujeito que tenha passado a idade da puberdade, a capacidade de reter contato psíquico com os objetos que promovem a gratificação do instinto[4], incluindo aqui pulsões infantis modificadas e residuais.
A objetividade é a capacidade de avaliar corretamente a relação da pulsão instintual com o objeto instintual, sendo os objetivos da pulsão gratificados ou não.
A natureza do juízo de realidade tem sido muito estudada a partir de três diferentes pontos de vista. O primeiro pode ser estudado no clássico trabalho de Ferenczi sobre o tema[5]. Este trabalho de Ferenczi baseia-se nas inferências extraídas de (a) um estudo do comportamento das crianças e (b) o conhecimento dos mecanismos mentais observados nas análises de adultos. As conclusões em que chegou são muito familiares e não requererem recapitulação, mas cabe assinalar que a partir do ponto de vista sistemático, sua apresentação está incompleta nos seguintes aspectos: com exceção da “etapa de onipotência incondicional” que se relaciona com a fase oral do desenvolvimento, ele não nos dá nenhuma indicação precisa da natureza ou da complexidade dos sistemas de desejo compreendidos. Novamente, descreve uma série de relações (em sua maioria reações), com o mundo dos objetos, mas não dá a correspondente descrição da natureza dos objetos instintuais concernidos. Esta omissão logo foi parcialmente retificada por Abraham, quem descreve as séries do desenvolvimento como séries evolutivas dos objetos libidinais incluindo um número de objetos parciais[6]. Desde então, nenhuma correlação sistemática foi tentada.
A partir do ponto de vista da presente investigação é interessante assinalar o esforço de Ferenczi por correlacionar suas etapas do juízo de realidade com os fenômenos psicopatológicos adultos. Particularmente associando certas manifestações obsessivas com “fases mágicas” do desenvolvimento do ego. A importância teórica desta correlação foi considerável. Implica uma significativa disparidade entre a regressão do ego e a regressão libidinal nas neuroses obsessivas. Em outras palavras, o ego do neurótico obsessivo reage como nas primeiras etapas do desenvolvimento do ego, enquanto que, segundo a concepção da época, a fixação libidinal do neurótico obsessivo corresponde a uma fixação (sádico-anal) muito mais tardia. Se a ordem das etapas da realidade sugerida por Ferenczi é exata, estritamente falando, deveríamos ter encontrado a neurose obsessiva durante a primeira infância. Recentemente, Melanie Klein precisou sua opinião a respeito do aparecimento de características obsessivas e, em algumas oportunidades, de neuroses obsessivas típicas durante a primeira infância – aspectos que eu mesmo pude confirmar não apenas em vários casos de adultos como em anamneses diagnósticas de muitas crianças – são mais do que suficientes para confirmar as conclusões de Ferenczi em relação com a profunda regressão do ego. De fato, se tivéssemos prestado mais atenção nesta primeira correlação teríamos antecipado estas descobertas em muitos anos. Ainda assim, de maneira alguma a dificuldade é superada em virtude de que a fase da reação mágica que Ferenczi descreve como correspondente à técnica obsessiva deva igualmente existir nas etapas oral e anal primárias, quando, até onde sei, as reações obsessivas são raramente observadas. Ferenczi mesmo esteve, evidentemente, atendo à discrepância porque sugeriu que casos de neurose obsessiva fossem uma regressão parcial a esta primeira fase do ego. Não considero que esta perspectiva seja muito plausível. Nunca me foi possível observar um caso chocante de regressão do ego que não tenha ativado inconscientemente o sistema libidinal correspondente à fase do desenvolvimento do ego[7].
A segunda linha de investigação está associada ao nome de Federn[8]. Por meio de uma análise cuidadosa da subjetividade e das introspecções documentadas, em particular diferentes graus de despersonalização, alienação, etc., ele tentou-se estabelecer os limites do ego narcisista. A partir disto podemos deduzir, até certo ponto, a ordem de reconhecimento e valor do objeto. Por exemplo, ele considera a variação do sentimento corporal do ego como um sintoma comprovável à regressão do ego, e tenta uma correlação dos limites do ego nas neuroses de transferência, psicoses e sonhos. Um estudo mais detalhado destes limites e regressões do ego poderiam seguramente ajudar-nos a chegar a alguma ideia dos sistemas de realidade em voga nas diferentes fases do desenvolvimento. A principal dificuldade pareceria ser que o conceito de narcisismo geralmente aceito entre psicanalistas é um tanto rígido. Este termo realmente põe em questão os limites do ego e dos objetos.
A terceira e mais recente abordagem foi estimulada pelo trabalho de Melanie Klein[9] nas psicoses das crianças. Aqui novamente temos que lidar, com inferências, mas com inferências extraídas de análises atuais de crianças que acabaram de sair da primeira infância. Consequentemente, temos a primeira tentativa detalhada de descobrir em termos concretos as etapas nas quais se alcança uma relação estável com a realidade, as características dos conteúdos mentais destas etapas e a relação destas etapas com as formações psicóticas e neuróticas. Klein enfatiza (a) a importância dos mecanismos primários da introjeção e projeção, (b) a importância da angústia como instigadora da defesa, (c) a importância das pulsões sádicas na geração da angústia e (d) a expansão gradual do juízo de realidade e da capacidade para objetivar, como o resultado do conflito entre um Id arbitrário e um superego quase igualmente irrealista.
Considerando esta abordagem e outros trabalhos recentes[10], torna-se claro que as etapas em desenvolvimento do juízo de realidade não deveriam ser consideradas isoladamente em termos de pulsão ou de objeto, mas deveriam ser referidas a etapas de domínio da angústia, onde o papel da pulsão destrutiva e libidinal se alternam. Cedo ou tarde, é claro, a definição da prova de realidade deve ser nos termos mais simples possíveis do instinto e de seus objetos. Eu já havia formulado tal definição. Mas a demarcação das etapas não pode ser levada a cabo sem um apropriado entendimento dos sistemas das fantasias precoces e dos mecanismos para enfrentar as angústias que estes sistemas ativam. A partir do ponto de vista adulto, os sistemas de “realidade” dos bebês e das crianças são claramente[11] fantasiosos, como uma consequência necessária do tipo de mecanismos mentais que predominam durante as etapas infantis, por exemplo: introjeção, projeção, etc.
Secundariamente, tudo o que a análise de crianças possa estabelecer concernindo o conteúdo mental, do qual podemos inferir as etapas do desenvolvimento do juízo de realidade, deve ter uma relação com a ordem da experiência perceptiva do mundo exterior. Isto envolve não somente o número maior de análises de crianças como um novo estudo do comportamento das crianças. Particularmente, necessita-se de uma investigação mais detalhada da natureza, da ordem e da “dispersão” dos desenvolvimentos da angústia precoce. Por este termo não me refiro às comumente chamadas “fobias de primeira infância” (por exemplo: medo do escuro, dos estranhos e ficar sozinho), às quais, até agora, nossa atenção esteve consagrada quase exclusivamente por causa de nossa preocupação pelos antecedentes da angústia de castração. Sobretudo, as fobias menores requerem sistematização. Não estão sinalizadas pelas evidentes reações de angústia, senão por manobras intrusivas, como imobilização transitória, perda de atenção, sonolência repentina, dissimulação da atividade de jogo, ou na versão oposta, concentração da atenção combinada com uma leve impaciência, jogo incrementado, etc. Como foi sugerido, os primeiros deslocamentos de interesse com relação aos objetos instintuais imediatos são estimulados por angústias de todo tipo. Ademais, estes deslocamentos são governados pelo simbolismo, um processo que está em parte responsável por sua ordem, aparentemente, ilógica. No entanto, existe uma verdadeira razão para crer que a frequência e a ordem na apresentação das percepções externas desempenham sua parte no enfoque das angústias infantis como na formação das fobias dos adultos. Quanto mais uma fobia adulta se enlaça a objetos ou situações “inabituais”, mais exitosa é: é mais vantajoso sofrer de uma fobia de tigres em Londres do que na selva indiana. O que já sabemos do instinto infantil nos leva a supor que, fatores simbólicos à parte, o interesse das crianças deveria irradiar-se desde seu próprio corpo (em particular nas zonas oral, gástrica e respiratória, em outras palavras, coisas interiores) para ir à comida, aos órgãos de alimentação e a seus anexos; da pele (particularmente as zonas de saliências e invaginações) em direção a suas próprias roupas e as roupas dos objetos externos; das zonas excretórias, órgão e conteúdos (outra vez quase exclusivamente coisas internas) em direção a parafernália excretória e as áreas excretórias dos objetos externos, finalmente em direção aos contatos não excretórios, como os odores, cores, ruídos e gostos; do corpo e as roupas em geral em direção ao berço, a cama, os cômodos, os móveis, cortinas, penduricalhos, sombras; da presença dos objetos “instintuais” em direção à ausência intermitente, desaparecimento ou possibilidade de desprender-se de certos “objetos concretos”. Deste modo, através da experiência da presença e ausência do mamilo (peito, corpo, mãe) estabelece um critério de interesses sobre os objetos móveis e em movimento que chegam ao alcance sensorial da criança em seu berço (roupas, brinquedos etc.). Não somente os objetos concretos, mas as sombras que movem na parede, raios de sol, sons e cheiros recorrentes. Neste sentido, as experiências perceptivas são classificadas como experiências instintuais, mas o fator de recorrência não pode ser ignorado. Os “estímulos” esporádicos podem ser ignorados, a menos que sua intensidade seja tal que provoque angústia. As impressões recorrentes fornecem as primeiras vias do deslocamento. Em outras palavras, podemos inferir que as etapas do juízo de realidade combinam uma ordem instintual, aparentemente ilógica, uma ordem simbólica com uma ordem de percepção natural. A ordem aparentemente ilógica do interesse infantil e o interesse em geral, de algum modo, não se deve isoladamente ao fato de que o recalque teria convertido um interesse primário ou um deslocamento de interesse em um simbolismo. De fato, tamanha importância do simbolismo, não devemos negar a cegueira e a carência de Einfühlung, empatia (em alemão no texto original), e a angústia inconsciente do observador do comportamento, o que resulta na imposição de uma ordem perceptiva de interesses adultos, considerada erroneamente como normal, sobre a ordem natural das crianças[12].
À espera de investigações analíticas e comportamentais mais precisas sobre as crianças, podemos, com vantagens, revisar as possibilidades que nos dão os estudos sobre os “adultos”. Devemos admitir que nosso interesse na psicopatologia do adulto tem sido especializada e circunscrita demais. Nós temos nos dedicado tão exclusivamente à etiologia das neuroses ou psicoses individuais que as relações destas com a ordem social ou as anormalidades sexuais têm sido, comparativamente, negligenciadas. Não há dificuldade em imaginar que os dados psicopatológicos podem estar tão ordenados que possam dar uma imagem distorcida do desenvolvimento normal. Mas isto implica numa classificação mais sistemática e detalhada do que se tem tentado até agora. Há certo tempo tentou-se esboçar tal classificação[13]. Incluindo um número de anormalidades caracterológicas, foi possível ordenar séries de desenvolvimento paralelo em acordo com a predominância, respectivamente, de mecanismos primários de introjeção e de projeção. Também foi possível diminuir o hiato entre neuroses e psicoses a partir da interpolação não das “psicoses borderline”, mas dos “estados transitórios” como a toxicomania[14]. Deste modo, situarei o termo corrente de toxicomanias como transitório, entre as paranóias e as formações de caráter obsessivo. A razão disto é que nas toxicomanias os mecanismos projetivos estão mais localizados e disfarçados do que nas paranóias, mais acentuados, no entanto, que nas desordens obsessivas. Nas toxicomanias os mecanismos projetivos encontram-se concentrados, localizados nas drogas nocivas: nos estados obsessivos a necessidade de projeção é atenuada pela existência de uma formação reativa de restituição.
Estas correlações foram necessariamente imprecisas, mas emergiu uma questão a partir de um estudo das formações transitórias como a toxicomania[15]. Parece claro que, localizando os sistemas paranóicos na droga nociva, o toxicômano é capaz de preservar seu juízo de realidade de maiores perturbações psicóticas. Em função de não termos uma terminologia adequada para descrever as etapas da realidade, é difícil expressar isto mais precisamente. Tomando emprestada, de algum modo, a terminologia parcial e simplista das primazias libidinais, podemos alcançar a seguinte posição: posto que o paranóico retorna a um sistema de realidade oral-anal, o toxicômano retorna ao ponto onde o bebê emerge este sistema. Em outras palavras, até este pondo o mundo externo representou uma combinação de um açougue com um banheiro público bombardeado e uma sala de velórios. O toxicômano transforma isto em uma mais tranquilizadora e fascinante farmácia, na qual o armário dos venenos[16] está destrancado. Havendo desta forma reduzido os perigos paranóicos do mundo próximo, a criança (ou o toxicômano) ganha um pouco de espaço para respirar, ver pela janela (acessar a realidade objetiva)
Esta observação é a primeira que dirijo minha atenção à possibilidade de reconstruir o desenvolvimento do juízo de realidade unicamente a partir dos dados psicopatológicos do adulto.
Em primeiro lugar, era óbvio que entre as toxicomanias havia uma ordem aparente de complexidade que, somada às diferenças prognósticas, sugeria uma ordem definitiva de regressão. Então, existia uma ordem definitiva de regressão dentro do grupo das toxicomanias, presumivelmente, as etapas no desenvolvimento do juízo de realidade correspondentes eram igualmente complexas. Não pode haver dúvida sobre as diferenças de estruturas nos hábitos do uso das drogas. Existem adições do tipo melancólico bem como do tipo paranóico, mas fica claro a partir do exame do material das fantasias que os diferentes instintos parciais são os responsáveis por certas variações clínicas. Aqui havíamos encontrado um obstáculo difícil de superar: estávamos acostumados a considerar os instintos parciais infantis como tendências inatas sem nenhuma ordem particular de prioridade e que levam uma existência autônoma dentro dos limites do narcisismo primário. Parecia não haver outra alternativa a não ser considerar a possibilidade de uma ordem natural entre as pulsões parciais similares à, e talvez em relação com, a ordem de primazia das zonas erógenas.
O estudo das toxicomanias trouxe à tona outro problema na classificação que também tinha certa relação com o desenvolvimento do juízo de realidade, quer dizer: a significação das formações perversas e dos fenômenos fetichistas que tão comumente acompanham os hábitos do uso de drogas. Sem dúvida, influenciado pelos pronunciamentos de Freud sobre o tema, em particular sua visão de que as neuroses são o negativo da perversão, tenho tido dificuldades em “dar um lugar” às perversões em uma classificação sistemática dos estados psicopatológicos. A princípio pareceu-me indicado acomodar as psicoses e as neuroses em uma única série de desenvolvimentos e logo intercalar as perversões em pontos diferentes da sequência principal. Deste modo, começando com as psicoses, tomei as toxicomanias como um tipo transitório para introduzir, em seguida, as perversões polimorfas mais primitivas, continuar com as neuroses obsessivas, introduzir aqui as perversões fetichistas e homossexuais, e por último, as histerias, inibições sexuais e angústias sociais. Mas apareceram muitas razões pelas quais esta ordem não pode ser mantida. Em particular, a experiência dos analistas das perversões homossexuais, neuroses obsessivas e estados psicóticos evidenciam direta e indiretamente uma ordem de regressão ou um desenvolvimento muito mais complexo. Pode-se observar frequentemente que durante as crises psicóticas ocorridas em alguns pacientes em análise, se desenvolvem formações perversas transitórias do tipo standard. Um dos meus pacientes que apresentava durante sua análise um estado esquizóide, ao qual estava ligado superficialmente uma perversão homossexual ativa, vivia o amor heterossexual como um severo traumatismo. O resultado imediato foi não somente o fortalecimento dos traços esquizofrênicos mas também uma regressão da formação homossexual ativa para uma fase passiva em primeiro lugar, em seguida a um cerimonial excretório polimorfo com ambos componentes, ativos e passivos, mas sem nenhuma experiência tátil. O traço evidente nesta regressão foi o enfraquecimento da verdadeira relação de objeto a favor de relações de objeto parcial. No cerimonial excretório o “objeto total” nunca era visto, ainda menos tocado. A princípio, menos evidente, foi o fato que estes cerimoniais atuam como uma proteção contra as angústias susceptíveis de induzir sistemas esquizofrênicos. Em outras palavras, ajudam a manter o juízo de realidade do paciente em certo nível. Os cerimoniais perversos não eram constantes: se alternavam com fases de depressão esquizofrênica. Entre os cerimoniais acentuava-se claramente esquizofrênico: seu juízo de realidade sofria uma redução extrema.
Alguns detalhes suplementares podem ilustrar este ponto mais claramente. As propostas heterossexuais do paciente incluíam alguns gestos lúdicos de estrangulamento: sua forma clássica de interesses homossexuais concentrava-se principalmente na zona das nádegas e incluía um alto nível de idealização, particularmente do ânus[17]. A repentina regressão implicava a visita em um banheiro público (especialmente após ter comido sozinho) onde era levada a cabo com a mistura de sentimentos de culpa e angústia, com fascinação e um grande apaziguamento temporário de ter uma série de exposições anais ativas e passivas através do furo da fechadura. O contato se restringia estritamente a passar bilhetes de convite sugestivos pelo buraco por onde se espiava: a pessoa em questão não era conhecida. Aliás, a menor suspeita de agressão quebrava o clima. Por exemplo, passar pedaços de papel higiénico sujos ou molhados pelo buraco ou por baixo da divisória provocava uma imediata e aterrorizada reação de fuga. Esta cerimônia de banheiro público era seguida de uma fase breve na qual eram praticadas exposições urinárias. O ritual urinário era abandonado pelo risco de contato com os pessoas reconhecidas e pela presença nos banheiros públicos de um número de outros espectadores indiferentes (potencialmente suspeitos).
Estas não são, em si mesmas, formas excepcionais de rituais: seu interesse especial está no fato de que o cerimonial funcionava como uma regressão a uma técnica previamente não familiar ou desconhecida. Em outros casos, a forma mais primitiva de ritual é aparentemente a praticada em uma forma modificada como parte de uma relação homossexual mais desenvolvida com objetos totais, mas torna-se acentuada por regressão. Um paciente dividia suas relações homossexuais em um grupo amistoso, com ou sem conexão gênito-anal, e em um grupo extremamente erótico caracterizado por violentos sentimentos hostis e atos eróticos igualmente violentos em direção ao objeto que era simplesmente como um órgão ou um conjunto de órgãos agrupados por uma massa indiferenciada de tecido conjuntivo – o corpo. Quando ocorreu a regressão, as relações homossexuais mais desenvolvidas desapareceram temporariamente, dando lugar ao cerimonial completo do banheiro público. Neste caso o corpo do objeto era reduzido às dimensões de objeto parcial por intermédio do furo pelo qual o paciente espiava. Quando um chapéu ou outra parte das roupas eram vistas, o clima era quebrado imediatamente. Isto estava nitidamente determinado pelo simbolismo das roupas, mas a relação do paciente era interessante, quer dizer: “isso era muito parecido com uma pessoa real”. Este sistema de cabine de banheiro público tem certa semelhança com tipos de masturbação, por exemplo, quando o sujeito visita um museu arqueológico e tem um orgasmo sem ereção contemplando fragmentos de estátuas, o torço, a cabeça ou as mãos. Em outros casos melancólicos e esquizóides frequentemente é observado que a saída da depressão com o correspondente crescimento do juízo de realidade era precedido pela emergência de fantasias sadomasoquistas primitivas. Frequentemente estes pacientes tentam direcionar suas fantasias para relações gênito-sexuais adultas. Mas em todo caso as tentativas falham ou são insatisfatórias; neste caso há um notável impulso para formar uma perversão. Isto pode tomar uma forma alo-erótica ou auto-erótica. Para exemplificar este último gostaria de citar um caso de uma depressiva que passou por uma fase transitória na qual ela se dirigia a banheiros públicos, despia-se, defecava e urinava no lavabo e brincava com as substâncias demonstrando uma mistura de sentimentos de angústia e adoração. Durante esta fase a depressão atual desaparecia. Para abreviar, apesar de ter sustentado por muito tempo que as relações homossexuais ordinariamente sistematizadas constituem um sistema defensivo e restitutivo que protege contra as angústias primárias e contra as angústias puramente gênito-sexuais, creio que, na maioria dos casos, a ligação não seja direta, e que exista um sistema de perversão mais profundo (recalcado e então não se discerne diretamente como uma perversão), que corresponde mais apropriadamente com o sistema de angústia original. Creio que isto deve ser descoberto antes que possa estabelecer-se um contato adequado com o sistema de angústia recalcado original. A partir do ponto de vista terapêutico, creio que de algum modo esta tendência à regressão na formação da perversão não deve ir além de uma formação transitória e possivelmente pode ser curto-circuitada(reduzida) por interpretações de fantasias perversas recalcadas.
Mais curiosa ainda é a estabilização das relações de realidade que podem ser efetuadas pelos interesses fetichistas transitórios. Previamente apresentei um caso[18] em que um neurótico obsessivo atravessava uma fase de toxicomania, cujo fim foi assinalado por uma regressão paranóica transitória. Durante a recuperação da fase paranóide foi observada uma formação fetichista temporária. Isto evidentemente funcionava como um substituto da relação paranóide com a realidade. O paciente foi capaz de reestabelecer as relações com a realidade tendo localizado a angústia em uma parte do corpo neutra, apesar de simbólica (as pernas) e tendo contrariado isto por um processo de libidinização (formação do fetiche).
Ao considerar estes fatos, o problema de relacionar as perversões com as psicoses, neuroses e outras anormalidades sociais e sexuais é, de certa forma, simplificado. Parece verdadeiro que as perversões mostram tanto uma série ordenada de diferenciações que consideram o fim e a totalidade do objeto, quanto que esta ordem de desenvolvimento ocorre paralelamente à das psicoses, estados transitórios, neuroses e inibições sociais. Isto evita a necessidade de intercalar as perversões em uma série classificatória das psicoses e das neuroses. É simplesmente necessário reconhecer ou descobrir os elementos das séries paralelas. Ao dar sequência nestas ideias, parece plausível que as ondas de libidinização e a verdadeira formação de sintoma sejam ambas exageros dos modos normais de superar a angústia obtendo, do resto, interconexão ou alternância compensatória ou protetora. O problema principal pode ser formulado da seguinte forma: As perversões formam séries de desenvolvimento refletindo as etapas de superação da angústia geradas pelo próprio corpo ou por objetos externos através de uma libidinização excessiva? E como corolário disto, as perversões ajudam não somente a preservar o juízo de realidade em outras divisões da psiquê como também indicam a ordem na qual o juízo de realidade se desenvolve?
Os argumentos a favor da tentativa de um apaziguamento, através de uma libidinização excessiva, não foram seriamente discutidos (veja, por exemplo, as observações de Freud[19] sobre a relação etiológica entre ódio e homossexualidade). Os argumentos contra as séries de desenvolvimento são principalmente: (a) a concepção “polimórfica” da sexualidade infantil, (b) a generalização da afirmativa freudiana de que a neurose é a negativa da perversão. No que concerne ao primeiro ponto, já indiquei que o termo “polimorfo”, apesar de ser suficientemente apropriado em um sentido geral descritivo, em comparação com a pulsão genital, é muito vago para os propósitos atuais. Estamos mais informados sobre o desenvolvimento ordenado da pulsão infantil durante os primeiros cinco anos e, como os estudos sobre as crianças tornam-se mais precisos, o termo “polimorfo” torna-se supérfluo. Quanto ao segundo ponto: esta generalização, quer dizer, que a neurose é uma negativa da perversão, é no entanto profundamente verdadeira, mas em um sentido estritamente limitado. É completamente apropriado para aquelas perversões e fetiches que existem em paralelo com as neuroses correspondentes, por exemplo: um fetiche de luvas e uma mania de lavar-se as mãos com antissépticos. Mas devemos acrescentar agora que certas perversões são o negativo de certas formações psicóticas, outras o negativo de certas psicoses transitórias. De fato, seguindo Ferenczi[20] e considerando juntos os quadros clínicos de psicoses, perversões e neuroses, que observa-se tão frequentemente, é valioso perguntar-se se a perversão não é, em muitos casos, o avesso de uma formação sintomática ou a sequela ou o antecedente de um sintoma que, de acordo com o caso, pode ser um meio profilático ou curativo.
Uma dificuldade mais ampla encontra-se no anterior pronunciamento de Freud[21] de que as perversões não se formam diretamente das pulsões parciais, mas estas devem ter sido rechaçadas através da fase edípica. Desde o momento em que este pronunciamento se referiu a uma fase edípica estereotipada que ocorre entre os três e os cinco anos de idade, praticamente paralisou a diferenciação etiológica, como atesta o livro de artigos de Fenichel[22], no qual a etiologia das perversões é de alguma maneira monotonamente descrita em termos de angústia de castração. Mas desde que Freud[23] sancionou um uso amplo do termo “Édipo”, estamos mais livres para considerar um elemento cronológico na formação da perversão. Todavia, a ideia da formação perversa em termos de camadas estratificadas sempre foi sugerida. Sachs[24] avançou nesta perspectiva baseando-se no recalque como um processo serial. Rank[25] também considerou que o grupo das perversões tinha diferentes níveis de evolução em relação aos sistemas ou localidades psíquicas correspondentes, mas limitou sua generalização estabelecendo que o perverso resta fixado na etapa anterior ao desejo por uma criança, sugerindo que a inibição perversa está diretamente especificada contra a “libido generativa”. Ambos escritores consideram que o fator determinante é o libidinal e a angústia que o acompanha como angústia de castração. A única objeção séria à classificação das perversões foi realizada por Fenichel. Ele não acredita que seja viável produzir uma classificação similar a das neuroses em coerência com a profunda regressão e a natureza das relações de objeto. Isto, ele disse, deve-se ao fato de que nas perversões está ausente o elemento de distorção que caracteriza as neuroses e as torna passíveis de uma classificação. Outra razão para esta objeção foi indicada anteriormente. Se estudar as partes de seu livro dedicadas à etiologia, descobrirá que não importa qual seja a natureza da perversão, a formula etiológica sugerida pelo autor nunca muda. Invariavelmente ele relaciona a formação da perversão à angústia de castração associada com a situação edipiana clássica. Clinicamente falando, este é um estado insatisfatório da questão. Sugiro que as dificuldades na classificação devem-se mais à natureza incompleta de nossas investigações. Em todo caso, as diferenças clínicas nas perversões são tão notáveis quanto as diferenças nas distorções neuróticas.
Agora, parece-me que Rank esteve mais próximo da solução do problema quando disse que o sadismo, na medida em que exclui a culpabilidade, era o verdadeiro modelo de perversão. Sugiro que a história do sadismo, ou melhor, das pulsões agressivas e destrutivas constitua um guia da etiologia e da ordem da formação perversa. Mas, além disso, a contribuição maior da libido à formação perversa, faz-se com a função de proteção. O próprio Sachs assinalava a relação que existia entre a perversão e a formação fóbica, mas não aplicou logicamente esta perspectiva a toda história infantil. Ele se limitava às fobias de castração, negando com isto as fobias mais primitivas. Se é importante estudar as perversões com relação ao juízo de realidade é que elas representam tentativas frequentes de proteção contra as angústias comuns de introjeção e de projeção através de um processo de libidinização excessiva. Em alguns casos a libidinização se dirige àquelas partes do corpo (tanto do sujeito quanto do objeto) que são ameaçadas no sistema de fantasias inconscientes. Em outros casos, o mecanismo de deslocamento introduz um elemento suplementar de defesa e de disfarce. Em outros ainda, é um modo de gratificação que é libidinizado, mais do que os objetos que parecem estar em perigo na fantasia. Em todos os casos, de algum modo existe certo grau de interferência com a função gênito-sexual adulta. Em outras palavras, as perversões ajudam a preservar uma taxa de juízo de realidade já alcançada, o que representa a longo prazo um sacrifício de liberdade na função libidinal adulta, apesar de que as neuroses permitem frequentemente à função libidinal adulta um ganho de liberdade suplementar, às custas de certa inibição das relações à realidade, e que as psicoses frequentemente mostram uma liberdade aparente da função libidinal adulta, acompanhada de graves perturbações do juízo de realidade.
Para resumir: se aplicamos as descobertas de Melanie Klein, considerando as primeiras histórias do sadismo infantil e tendo em mente o que a psicanálise em geral nos ensina concernindo o domínio do sadismo pela introjeção, projeção e outros mecanismos inconscientes, estamos em condições de postular uma série de situações de angústia que encontram-se em constante mudança. Situações que podem tomar grande dimensão, dando lugar a uma fase de formação de sintoma ou formação de perversão. Esta generalização pode ser aproveitada no estudo do juízo de realidade e seu desenvolvimento. Como Klein assinalou, as relações de realidade estáveis não podem ser estabelecidas até que as angústias primitivas tenham sido dominadas. Esta é a mais verdadeira das faculdades da objetividade. Em outras palavras, o juízo de realidade depende da emancipação dos sistemas de percepção do corpo e do meio ambiente, emancipação da intervenção excessiva da angústia nos mecanismos projetivos e introjetivos. Esta emancipação ocorre em uma ordem definida que, provisoriamente, sugiro: são as zonas ou órgãos corporais, a comida, o vestido e as matérias expelidas (dejetos) sejam eles pessoais ou pertencentes aos objetos pulsionais.
A sequência dos acontecimentos pode ser descrita da seguinte maneira: como um resultado da alternância dos processos de introjeção e projeção, ocasionados pela frustração do instinto, a relação da criança com o que o observador adulto poderia chamar de realidade objetiva, aparece distorcida e irreal. No entanto, a criança durante esta fase tem uma realidade objetiva primitiva por conta própria. Em primeiro lugar ela tem contato psíquico com objetos que a fornecem instintos de auto-conservação em seu estado mais bruto, bem como tem contato com objetos que ameaçam realmente sua integridade (reais perigos externos, danos e agressões). Em segundo lugar, a criança tem contato com esta parte da realidade que gratifica certas necessidades de amor. Este pequeno enclave da realidade objetiva infantil está submerso pelas produções deformadas do medo. Um dos primeiros tratamentos para esta deformação é o processo de libidinização que neutraliza ou deixa em suspenso alguns dos sistemas de medo irreal neutralizando o sadismo. Este processo é reforçado prontamente por algumas formas de recalque. O resultado é que o núcleo original da realidade infantil pode ser “destacado” da massa de reações irreais. Este sistema de libidinização nunca é realmente abandonado, apesar de que seus mais dramáticos efeitos são observados exatamente antes que o recalque advenha de forma realmente maciça. A realidade objetiva adulta é um produto secundário deste processo. Uma vez resgatada, a realidade objetiva infantil se expande através dos recursos auxiliares do deslocamento e da sublimação, até os limites das necessidades e interesses adultos. Somente quando o sadismo é adequadamente neutralizado, a sublimação pode proceder e, seguindo a via do simbolismo, agregar-se a nossos contatos de realidade. A realidade objetiva adulta, fora da auto-conservação é algo que reconhecemos na herança infantil, algo do qual manteríamos posse e que expandiria após ter atravessado as telas do medo, libidinização e sublimação. Em alguns aspectos é verdadeiramente um resíduo, na perspectiva que se acorda com o fato de que os adultos são, de várias formas, menos objetivos do que as crianças. Esta herança estendida ou residual, funciona, no fim das contas, como garantia da ausência do medo. Está manifestadamente limitado de acordo com o campo do interesse individual, mais o campo dos interesses dos indivíduos que nós amamos ou odiamos.
Quando, por alguma causa, certa forma de infantil é reanimada ou exacerbada na vida adulta, uma das muitas maneiras de enfrentar esta crise é o reforço dos sistemas primitivos de libidinização. Isto dá lugar ao que chamamos perversão. Estou de acordo com o ensino de Searl[26] em que a sublimação só pode ser exitosa se a realidade não for demasiadamente libidinizada, o que implica que o problema do sadismo tenha sido resolvido. De maneira alguma isto contradiz a opinião de que uma libidinização excessiva “localizada” (uma perversão, por exemplo) pode preservar uma relação mais estendida com a realidade, a partir do sacrifício de “certas” relações com a realidade, “certas” sublimações e “certas” funções genitais adultas. As perversões ajudam a reparar as falhas no desenvolvimento do juízo de realidade. Por esta razão as perversões mais primitivas são em alguns aspectos mais compulsivas que as perversões homossexuais avançadas. Elas são tratamentos mais apropriados para as velhas angústias. O inconveniente das perversões primitivas é que estão mais próximas das fontes da angústia, quer dizer que elas convêm bem demais. A homossexualidade originária reassegura principalmente em relação aos objetos totais e não em relação aos objetos parciais primitivos. O crescimento progressivo na capacidade de apaziguamento da libido é, ao meu ver, mais aparente que real. Ou talvez seja mais apropriado dizer uma relação com objetos de amor reais, apesar de serem indubitavelmente uma grande fonte de apaziguamento, é um tratamento menos apropriado às angústias primitivas do que o amor primitivo dos objetos parciais. Temos aqui uma justificativa teórica para o ponto de vista defendido por Melanie Klein[27] de que sob circunstâncias favoráveis, as experiências sexuais infantis podem favorecer o desenvolvimento da realidade. Mas devemos aceitar também a conclusão de que tais experiências, de natureza ativa ou passiva, acidentais ou provocadas de antemão, favorecem o desenvolvimento da realidade somente na medida em que funcionam como perversões infantis.
Indiquei os eixos ao longo dos quais o material psicopatológico adulto pode ser investigado para descobrir as etapas do desenvolvimento do juízo de realidade. Fora este particular interesse, creio que a intenção seja valiosa ao menos para reduzir as confusas considerações existentes na classificação dos distúrbios mentais. Resta indicar quais são os eixos de investigação mais produtivos e quais são os obstáculos mais significativos a este progresso. Como considerado anteriormente, estou influenciado por circunstâncias casuais de que meu próprio material cobre parcialmente o grupo dos estados transitórios, perversões e neuroses obsessivas. Apesar de reconhecer o valor dos estudos psicanalíticos sobre os estereótipos da esquizofrenia, para não falar das ditas fobias histéricas, demonstrar-se-á que esta conexão é inestimável, tenderia a crer que teremos melhor perspectiva se começarmos pelo ponto onde as psicoses transitórias, as perversões e as neuroses obsessivas se encontram. De fato, tenho a impressão de que as aproximações mais produtivas para o estudo do juízo de realidade encontram-se no estudo do fetichismo, incluindo aqui os fetiches narcisistas nos quais parte do corpo ou da roupa do paciente fornecem gratificações sexuais. No fetichismo existe um gral de localização do interesse e da estereotipia do deslocamento que promete dar informações mais exatas sobre os sistemas de angústias precoces, do que a informação que nos provém das ramificantes perversões ordinárias. O próprio Freud[28] assinalou que a denegação da angústia efetuada pelo fetichismo é similar à denegação psicótica da realidade. E Lorand[29] comentou o rápido desenvolvimento intelectual apresentado em um de seus casos.
Usei o termo fetiche narcisista a contragosto. Por um lado, creio que o que chamamos “narcisismo erótico” é um composto de verdadeiras atividades auto-eróticas e relações alo-eróticas ocultas com objetos parciais. Novamente o termo masturbação é notoriamente insatisfatório, o que se aplica igualmente a termos descritivos tais como travestismo. Muitos dos fenômenos que observei deveriam ser considerados descritivamente como a meio caminho entre travestismo e masturbação. Ainda assim, sustento que são fetichistas em princípio da mesma maneira que muitas outras das chamadas atividades sexuais espontâneas da infância são também – em princípio – perversões.
Compara-se, por exemplo, a continuação de dois sistemas observados num caso. O indivíduo em questão tinha um fetiche simples de piano, que quer dizer que o contato com um certo tipo de piano (com calda nova e brilhante) o levava a uma excitação sexual e ao orgasmo, com ou sem manipulação. Em seguida, o mesmo piano perdia gradualmente o efeito estimulador. Um piano arranhado ou descolorido ou com a calda roída por traça era um tabu. Por outro lado, a cada vez que o paciente se vestia com roupas novas, em especial quando comprava um traje completo, desenvolvia uma ereção que durava pelo menos doze horas, que às vezes culminava em um orgasmo. Durante este período ele ficava em um estado de extrema felicidade. Um outro paciente associava um automóvel fetiche que perde seus efeitos tão logo nele espirrasse lama ou que o estofado fosse sujo de graxa, com uma excitação masturbatória sobre seus próprios sapatos quando eles estavam novos, enquanto seu brilho original se mantinha intacto. Em ambos os casos, as manifestações aparentemente auto-eróticas correspondiam diretamente ao sistema objetal.
Os exemplos acima podem ilustrar um dos tantos obstáculos para a investigação neste tema: o fato de que os termos como “narcisismo”, “autoerotismo”, “ pulsão parcial”, “perverso polimorfo” etc., estejam, em certo nível, gastos pelo uso, tenham perdido a validade. Devem ser substituídos a tempo por termos extraídos do estudo dos fenômenos de introjeção. Deveríamos ser capazes de dizer exatamente qual estágio na introjeção dos objetos parciais é ocultado por alguma forma de autoerotismo.
Uma segunda dificuldade é evidenciada pelo estudo do fetichismo, a saber, o fato de que as neuroses obsessivas estão inadequadamente subdivididas ou classificadas. Eu já descrevi um caso de neurose obsessiva no qual um interesse fetichista transitório ajudava no reestabelecimento de uma fase paranóide. E frequentemente observei que certos casos de toxicomania desenvolvem (durante período de abstinência) sintomas obsessivos transitórios pouco localizados em ação. Descrevi algumas destas reações obsessivas como “fenômenos fetichistas negativos”. Muitas fobias de contaminação localizadas com ou sem manias de lavação, são deste tipo e podem alternar com um interesse erótico nas mesmas partes do corpo.
Referindo-me à etiologia do fetichismo, escrevi em um trabalho anterior[30]: “ Deve haver duas formulações aproximativas aceitáveis: a) que na transição entre os sistemas paranóides e uma reação normal à realidade, a toxicomania (e posteriormente o fetichismo) representa não apenas continuidades do sistema da angústia dentro de um alcance limitado, mas também o início de um sistema de apaziguamento em expansão. O apaziguamento é ocasionado pelas contribuições das etapas libidinais tardias da infância que contêm um modo de sadismo decrescente. b) Que a roupa em geral é, depois da comida, a segunda linha de defesa para superar as reações paranóides à realidade. Parece razoável supor que os primeiros sistemas paranóides da criança se ligam à comida, que estas angústias são modificadas não apenas pelo aparecimento das pulsões menos sádicas, mas também por um esforço determinado de deslocar a angústia. Neste deslocamento da angústia as roupas cumprem seu papel. Quando secundariamente o deslocamento induz reações nas roupas dos objetos externos, a fundação do clássico fetiche está instalada. Desta forma, quando a angústia é excessiva o resultado é um fetiche sexual típico ou uma forma negativa, quer dizer, uma “fobia de contaminação”.
Finalmente, um estudo da etiologia do fetichismo dá lugar ao que é talvez um dos mais importantes obstáculos imediatos para o entendimento do desenvolvimento da realidade, a saber, a carência de informação sistematizada sobre a natureza exata da fase oral do desenvolvimento. As primeiras formulações etiológicas relativas ao fetichismo assinalaram fatores fálicos, escopofílicos e sádicos: posteriormente a importância do falo imaginário da mãe foi muito enfatizada. Ainda mais recentemente a importância de outros elementos foi acentuada. O próprio Freud destacou que o fetichismo eleito pode não ser necessariamente um símbolo peniano comum e, nós sabemos, a partir do trabalho de Ella Sharpe[31] e outros, que isto se deve à contribuição de elementos pré-genitais, por exemplo, o sadismo oral. Esta nova orientação está de acordo com o que realiza Melanie Klein e adota sua extensão da segunda fase oral para incluir o interesse fálico edipiano autêntico. Mas, quanto mais universal são tais fatores, menos úteis eles são na diferenciação etiológica. Sem realizar nenhuma observação analítica, pode-se deduzir, com base em dados comportamentais que a primeira fase do desenvolvimento infantil deve ser predominantemente oral. A existência do interesse fálico durante a fase oral também poderia ter sido deduzida sem análise. Quanto mais as análises confirmam a importância destes precoces interesses fálicos, mais torna-se urgente subdividir as fases orais, e considerar partida jogada durante o que chamamos agora de primeira fase oral, por outras zonas erógenas importantes e pelas pulsões parciais, em particular, o erotismo respiratório, gástrico, muscular, anal e urinário. Não é suficiente para estabelecer os contornos do desenvolvimento em termos de fases. É necessário uma diferenciação mais detalhada antes de fornecer uma fórmula etiológica que exige a existência de variações clínicas nos distúrbios mentais.