Miles Davis Blue Flame – Music is wide open for anything (Miles Davis)

Miles Davis Blue Flame – Music is wide open for anything (Miles Davis)

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Sérgio de Mattos (Belo Horizonte, Brasil)

Blue flame

Em sua autobiografia[1], lemos nas primeiras frases acontecimentos que não chamaram a atenção dos produtores de The birth of the cool – Netflix. Desde o princípio, a fala de Miles nos entrega uma lógica de sua vida, determinada por eventos e significantes que conduzem a uma formalização que impressiona pela clareza e rigor, e na qual vemos se instaurar uma escritura “selvagem do gozo” na raiz da iteração e do seu “destino”. Distribuirei esses parágrafos iniciais ao longo desse texto.

A coisa mais antiga que me lembro em minha primeira infância é de uma chama, uma chama azul pulando de um fogão de gás que alguém acendeu. Me lembro de ter ficado chocado com o whoosh[2] da chama azul pulando pra fora da trempe, rápida e súbita. Isso é o mais longe que me lembro; mais para trás do que isso é apenas neblina, mistério. Mas aquela chama do fogareiro é tão clara quanto música em minha mente. Eu tinha três anos de idade.[3]

Chama azul / whoosh. Vemos aí a matéria prima da repetição, da adicção enquanto iteração, choque, significantes e matéria sonora. Continuo:

Eu vi aquela chama e senti o calor dela próxima ao meu rosto. Senti medo, medo real, pela primeira vez em minha vida. Mas eu me lembro disso também como um tipo de aventura, algum tipo de alegria estranha. Acho que essa experiência me levou a algum lugar na minha cabeça, onde eu nunca tinha ido. A alguma fronteira, borda, talvez, de tudo que é possível.

O sujeito se experimenta aí em uma borda diante de algo que sugere um infinito ilimitado  – tudo que é possível -, em um gozo sentido como medo real e alegria estranha, aventura, borda de dupla face torcida como uma banda de Moebius, entre atração e repulsão.

Impulsão com exigência de infinitude

O medo que senti era quase como um convite, um desafio para ir adiante e imergir em algo do qual eu não sabia nada. É daí que acho que minha filosofia de vida pessoal e meu compromisso com tudo que acredito começaram. Eu sempre acreditei e pensei desde então que meu movimento tinha que ser para frente, longe do calor daquela chama.

Miles Dewey Davis III é um dos mais influentes músicos do século XX. Esteve na vanguarda dos desenvolvimentos do jazz, reiteradamente mudando a si mesmo e sua música, mudando para sempre o cenário musical da música contemporânea. O documentário mostra sua busca incessante do novo, de um encontro constante com o instável e o instante e um desinteresse pelo passado. Erin Davis, seu sobrinho, lembra que Miles nunca falava dos discos que havia gravado, não tinha nenhum deles em casa, e só se interessava pelo que trabalhava naquele momento. Miles se empenhou em um modo de vida onde a instabilidade e o excesso eram essenciais para engendrar sua capacidade de criar, como um ímpeto a se tornar outro, ekstasis[4].

Entretanto sua música é reconhecível desde a primeira nota de seu trompete: um som puro, elegante, cheio de bravura, caloroso, tocando de leve nas ondas do som, em uma palavra, cool. Sua vida foi uma aventura e um desafio comprometidos totalmente com a mudança para criar. Absorvia o que estava acontecendo “agora”, buscando novas formas de abordar a música.

Como podemos ler essa exigência de mudança contínua? O que o impulsiona?

Na experiência analítica temos a noção de algo que nos impulsiona. Sobre ela a psicanálise produz ficções, que constituem artifícios para se captar algo dessa experiência.

Em Baltimore Lacan sugere a presença de uma impulsão que mesmo enraizada na linguagem, em sua deriva, explode as defesas do princípio do prazer e visa aproximar-se do gozo como o que pode dar sentido a uma vida.

Nós seriamos tão tranquilos como as ostras se não fosse essa organização curiosa que nos força a fazer voar em pedaços a barreira do prazer, ou talvez nos faça somente sonhar em fazê-la voar em pedaços …  mas … tudo que é elaborado pela construção subjetiva na escala do significante e sua relação com o Outro, e que é enraizado na linguagem, não existe senão para permitir ao desejo sob todas as formas de se aproximar, de testar esse tipo de gozo interdito que é o único sentido válido oferecido à nossa vida[5].

Se nessa passagem de 1966 esse impulso liga-se ao desejo, no ultimo ensino, ele é isolado como não simbolizável, infinito, heterogêneo à máquina sim-não do significante e passa a ser entendido como o regime primário do gozo como tal. Miller dá como exemplo um sonho, que lhe havia sido contado: “um gêiser turbilhonante, efervescente de uma vida inesgotável que lhe apareceu como o que ela havia sempre buscado, ao qual ela sempre havia buscado se igualar[6].

No Seminário 20, Lacan conecta esse gozo ao significante Um sozinho, dando-nos a trilha por onde as adicções se infinitizam. “E é aí que está o estranho, o fascinante, é o caso de se dizer – essa exigência do Um, como já o Parmênides nos podia fazer prever, é do Outro que ela sai. Aonde está o ser há exigência de infinitude”[7].

A existência dessa meta interna que sempre se satisfaz, que não cessa de se escrever, como uma necessidade – não do organismo biológico – mas como fruto do encontro traumático do significante com o corpo, está no princípio da iteração.

Um outro exemplo, da relação entre significante, impulso e adicção, é o que ocorre no “vício” do jogo: “estamos totalmente presentes e ausentes, como se o um se aproximasse do zero, onde toda a vida está em jogo naquele instante”[8].  Aí verifica-se, como mostra Dostoiéviski no livro O Jogador, um gozo que se obtém ao escapar da prisão do significante. Ali revela-se que  se em um primeiro tempo o jogador está movido pelo amor romântico, pela honra, pelo amor próprio, ou seja, por uma lógica fálica, a seguir nada disso está mais em jogo.

Lembro-me nitidamente que de súbito, sem ser de modo algum espicaçado pelo amor próprio, fui possuído por uma sede de risco. Talvez que depois de ter passado por tão grande número de sensações, a alma não possa saciar-se, mas só irritar-se e exija sensações novas, mais e mais violentas, até o esgotamento total. … Realmente experimenta-se uma sensação especial quando, sozinho, num país estrangeiro, longe da pátria, dos amigos, não sabendo o que se vai comer nesse mesmo dia, se arrisca o último florim, o último, o último![9]

Junkie profissional

Para Miles, convergindo com seu modo iterativo de criar e recriar; sua entrada na toxicomania advém de uma outra experiência traumática. Como nos explica, o uso das drogas se inicia com seu retorno aos Estados Unidos após uma transformadora estadia em Paris.

Eu nunca havia me sentido daquele jeito. Era a liberdade de estar na França e ser tratado como um ser humano, como alguém importante, e a música que eu tocava soava melhor lá. Até os odores eram diferentes. Tudo parece ter mudado para mim quando estive em Paris. Encontrei Juliette Gréco e ela me ensinou o que era amar algo além da musica… Eu estava apaixonado… Juliette me pediu para ficar. Até Sartre disse: “por que você e Juliette não se casam?” Mas eu não o fiz.. Quando voltei para meu país, no avião, estava tão deprimido que não consegui dizer nada na volta. Eu não sabia que aquilo ia me abater daquele jeito. Eu estava tão deprimido quando eu voltei, e soube isso só depois, que foi por isso que entrei na heroína por anos. O que me colocou preso nas drogas foi a depressão que senti quando voltei para a América. E a saudade de Juliette.

Ao tornar-se em suas palavras um “Junkie profissional”, Miles parece buscar tratar o trauma atual do retorno aos USA, que se amalgama com o acontecimento de corpo do passado. Droga e trauma são como um casamento consumado. Há uma correspondência estrutural entre eles. Ambos mergulham o sujeito em algo de estranho, em um excesso de gozo sem nome, e junto a isso um sentimento de que tudo mudou depois que “aquilo aconteceu”, a partir do que, a pessoa não se sente mais a mesma.

Ao retornar ao seu país, e reencontrar sua antiga vida, Miles vive um episódio melancólico e parece reduzido a seu corpo como algo heterogêneo.

Medo do corpo

O corpo almado, digamos assim, parece sempre vulnerável aos impactos do real e desse funcionamento exigido: goza! Mas disso também é preciso se defender.

Do que é que temos medo? Lacan afirma que é de sermos reduzidos ao nosso corpo quando o sujeito é afetado pela transformação direta da libido, lá onde o significante falha na sua inscrição. Medo, no momento em que o corpo é afetado, por um real do gozo, perturbando sua organização, no momento que esse se manifesta totalmente heterogêneo ao meio ambiente que o rodeia[10].

Proponho aqui a hipótese de que, junto ao uso das substâncias, seu movimento iterativo de mutação foi um modo de Miles tratar esse “corpo heterogêneo”, por meio de um engendramento múltiplo de uma série de outros corpos. Miles é um consumidor do novo, como modo de afastar-se da chama que lhe provoca “um medo real”, ao mesmo tempo que certamente ela é a raiz de sua aventura. Há nesse movimento uma dinâmica de apagamento e recriação, de imersão no gozo e defesa. E a cada passo desse movimento um re-start, um a um.

Corpo estrangeiro, engendrar corpos um a um

Buscando entender esse movimento de lançar-se no instável, nos instantes, no excesso, no risco, me servirei da ideia da produção de um “corpo estrangeiro” para abordar esse espaço onde o gozo fora de sentido afeta um corpo que precisa se recompor à margem das soluções oferecidas pelo Nome-do-Pai.

Lacan sugere que em Joyce a imagem não tem um lastro, tornando-se necessário o processo de engendramento de um corpo estrangeiro, que não é uma estrutura. Mas que podemos pensar como o produto de procedimentos insólitos para tomar corpo, ou para compor superfícies corporais como acontecimentos. Lacan nota que “ter seu corpo próprio como estrangeiro é com efeito uma possibilidade”[11]. No caso de Joyce, ele aparece em Stephen Dedalus quando “perde seu corpo”, mas também na escrita que constitui o ego de Joyce, e ainda na relação de Joyce com sua mulher Nora (a luva que lhe envolve o corpo). O que é crucial destacar, entretanto, é que se trata de uma “escrita sonora e musical”. Finnegans Wake pode ser considerado uma sinfonia de palavras, uma sinthomia[12]. Em um esquema simplificado, o procedimento joyceano faz a linguagem virar-se no sem sentido da música, enquanto a música renderiza cacofonias e se dissolve em gargalhadas, audíveis no gozo solitário de Joyce enquanto escrevia.

Em Miles se trata das criações, recriações musicais, suas transformações pessoais, improvisos, suas roupas e seus carros e mulheres. Será que Miles não nos ensina uma dinâmica outra em jogo nas adicções que consiste em engendrar esse corpo estrangeiro, fazendo uma experiência única de si que repetitivamente o ultrapassa? Diante daquilo que o atravessa, contra o qual tromba – que Miles mesmo provoca – ele responde com uma nova criação na qual está inteiramente envolvido e da qual goza. É interessante notar em ambos o valor do sonoro como o que fixa um gozo, como uma agulha que grava a palavra no corpo que é tocado.

… eu não quero tocar como ninguém a não ser eu mesmo, quero ser eu mesmo qualquer coisa que isso seja, eu tenho tantos sentimentos em algumas frases que eu sou um com elas, aquela frase sou eu!

 Miles é o tecido sonoro com o qual faz um outro corpo com o qual vibra de vida. Por onde Miles se faz belo! Lom Lom, l’air, Miles ahead[13].

So What!?

Busquei enfatizar na biografia de Miles Davis, que há fortes indícios de que há algo intrínseco à sonoridade que é o que fixa um ponto de gozo, por onde se podem engendrar corpos “estrangeiros”, sobre os quais precisamos elaborar mais a partir da indicação de Lacan. Contudo, parece certo que essas fixações operam como uma assinatura vibratória, que ao ser tocada se reitera. Podemos então nos perguntar: em uma análise, não seria importante tocarmos essa nota? Seria possível ouvi-la? Anotá-la, provocá-la, lê-la em certos afetos? Em que a escuta musical, sua teoria, as composições dissonantes, com padrões discretos, ritmos complexos, singulares notações, poderiam contribuir com a nossa prática hoje e amanhã?

Nas vésperas de um tempo onde os avatares virtuais habitarão o Metaverso, podemos esperar em nossos consultórios, fortes adicções e perturbações subjetivas ligadas à fantasia de que com esses corpos feitos de bits finalmente faremos existir a relação sexual.

Pensar hoje a adicção e as toxicomanias – o sujeito do gozo de maneira geral – ligadas ao corpo e ao Um, não nos levaria à necessidade de refletirmos mais sobre esse engendramento de corpos, sua relação ao sonoro, essa criação de Joysigns[14], como soluções singulares à margem do Nome-do-pai?


[1]  Davis, M. The Autobiography/Miles Davis with Quincy Troup. 1st Touchstone ed. NY, 1989.
[2]  No Oxford Dictionary: movimento de urgência, mover rápido ou de repente com um som. Exclamação usada para imitar um movimento repentino acompanhado de um rushing sound. Onomatopeia de um som sibilante, sussurro, sopro.
[3]  Todas as traduções à autobiografia foram feitas pelo autor desse texto.
[4]  Aristóteles, L’homme de génie et la mélancolie. Paris. Éditions Rivages, 1988. Vol. 1. No problema XXX, Aristóteles propõe uma reflexão essencial sobre a ocasião “káiros” de sair de si “ekstasis” em um encontro do instável e do instante.
[5]  Lacan, J. De la structure comme immixtion d’une alterité préable à un sujet quelconque. Conférence à Baltimore, 1966. La cause du désir n. 94. Paris: Navarin, 2016.
[6]  Miller, J.-A. O Um sozinho, lição de 02.03.2011, inédito.
[7]   Lacan, J. O Seminário, livro 20, Mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 19.
[8]  Como me contou um analisante sobre a experiência do jogo e de todos os âmbitos de sua vida.
[9]  Dostoiéviski, F. O jogador. Centaur Editions, 2013. Arquivo da Internet.
[10]  Roy D. Introdução ao Congresso da NLS 2023: https://www.amp-nls.org/wp-content/uploads/2022/07/Argument-FINAL-VERSION-DISCONTENT-AND-ANXIETY-IN-THE-CLINIC-AND-IN-CIVILISATION.pdf .
[11]  Lacan, J. O Seminário, livro 23, O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 146.
[12]  Neologismo proposto por Scott Wilson no livro Stop making sense. Music from the perspective of the real. Great Britain, Karnac, 2015.
[13]  Miles ahead (milhas à frente) – é o nome de um álbum lançado em 1957, o primeiro com o arranjador Gil Evans.
[14]Joycean joysigns, como sugere Scott Wilson, op. cit.

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