Três Observações sobre a Toxicomania*

Três Observações sobre a Toxicomania*

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Three Observations on Drug Addiction

Éric Laurent (Paris, França)
Analista Membro da Escola (AME) da École de la Cause Freudienne ( ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise ( AMP)
Analyst Member of the School of ECF and WAP

Resumo: “A utilização de tóxicos leva a pensar que pode haver produção da ruptura com o gozo fálico, sem que haja, portanto forclusão do Nome-do-Pai. Esta é a consequência da tese, sustentada até o extremo, que o tóxico não existe, ou que a toxicomania não é um sintoma”.
Palavras-chave: Gozo fálico, gozo uno, toxicomania, psicose
Abstract: “The use of drugs leads us to think there may be a break with the phallic jouissance, without forclusion of the Name-of-the-Father. It’s the consequence of the thesis, sustained to an extreme, that the toxic doesn’t exist, or that drug addiction is not a symptom”.
Keywords: Phallic jouissance, One jouissance, drug addiction, psychosis

Quando falamos de toxicomania, transportamos com este termo uma clínica de outra época, aquela das monomanias de Esquirol. No entanto, não devemos esquecer que nos situamos hoje num contexto inteiramente novo, de algum modo próximo, como nos lembra Demoulin, daquele que Freud viu surgir sob seus olhos, mas numa escala diferente.

Estamos num contexto onde uma das potências mais eficazes e a mais empírica do mundo, os Estados Unidos, declarou uma guerra total à droga, e onde um pequeno país, a Colômbia, se encontra praticamente nas mãos de um certo número de traficantes. O que quase aconteceu na Europa, na Sicília, mais precisamente, não tão longe de nós – ou seja, que um estado esteja sujeito a um bando de malfeitores – está em vias de acontecer na Colômbia, que sozinha, exporta o mesmo, em valor, que toda a América Latina menos o Brasil, unicamente exportando seu tóxico.

Então quando falamos hoje numa escala fenomenal, jamais vista na história, é isso que faz com que o contexto seja inteiramente novo. Vemos publicações como o muito razoável The Economist, uma publicação conservadora, por seu liberalismo econômico, advogar fortemente pela legalização da droga, simplesmente porque seus redatores são consequentes com seus princípios. O princípio deles é que um tóxico conseguiu se identificar absolutamente com as leis do mercado e que se podemos tratá-lo agora segundo estas leis, quer dizer diminuir o benefício tendencioso, é preciso legalizá-la, para que a droga não dê mais lucro a ninguém. E é a única forma de reduzir os danos. Estas proposições foram feitas há 6 meses**, pela primeira vez, em meio a uma série de grandes apostas sobre este ponto.

É uma data. Uma data na medida em que pela primeira vez na história, uma substância tóxica consegue identificar-se perfeitamente com as leis utópicas de um mercado, o que nenhuma droga legal até agora conseguiu, nem o álcool, nem o tabaco, que continuaram perfeitamente controlados pelo estado. A forma “Estado”, seja no Mundo Antigo ou no Novo, controlou, com legislações bastante estritas, as quantidades da produção. Aqui na Europa, sabemos que o excedente de álcool é um tema que se resolve muito tranquilamente e que não ocasiona nenhum transtorno ao Estado. Temos assim uma data que introduz o estupefaciente numa ordem que Freud não viu se desencadear.

Em seu ensino, não se pode dizer que Lacan tenha considerado que a psicanálise tenha muito a dizer sobre a droga, porque no fundo, percorrendo-o do início ao fim, encontramos apenas algumas frases, mas nos dá de algum modo nos anos 70, esta indicação maior: “a droga, única forma de romper o matrimônio do corpo com o pequeno-pipi”; dizemos: com o gozo fálico. É uma indicação preciosa. Além disso, ela suporta, creio, toda uma reflexão que muitas pessoas que se ocupam de toxicômanos fizeram, a de considerar que a toxicomania não é um sintoma no sentido freudiano e que a toxicomania não é consistente. Nada na droga nos introduz a outra coisa que não seja um modo de ruptura com o gozo fálico. Não é uma formação de compromisso, mas uma formação de ruptura. Abre-se o problema de como escrever a ruptura com este gozo fálico: escreveremos φ0 ou Φ0?*** Como vamos determinar, diferencialmente, se trata-se de novo modo de gozo, ou de um buraco de gozo?

Efetivamente, esta expressão “ruptura com o gozo fálico”, Lacan a introduz também para a psicose – onde ele anota Φ0, como consequência da ruptura, ruptura da identificação paterna, dizia Freud, e para Lacan, da função do Nomes-do-Pai, que ele escreve P0. No lugar onde os Nomes-do-Pai produzem a significação fálica do que é dito, temos na psicose esta dupla de termos: P0 e Φ0, e Lacan se pergunta, em um dado momento se um não implicaria necessariamente o outro, ou se pode haver um sem o outro.

Para a psicose não sei. Mas, seguramente a utilização de tóxicos leva a pensar que pode haver produção desta ruptura com o gozo fálico, sem que haja, portanto forclusão do Nome-do-Pai. Esta é a consequência da tese, sustentada até o extremo, que o tóxico não existe, ou que a toxicomania não é um sintoma.

A tese de Lacan a propósito da toxicomania é, pois, uma tese de ruptura. Sua breve observação, nesse sentido por mais breve que ela seja, é, no entanto, uma tese que engaja forçosamente toda sua teoria do gozo, assim como a do lugar do pai e o futuro do Nome-do-Pai em nossa civilização.

A contrario, em contraponto, digamos, dessa ruptura, farei notar que me ocorreu encontrar toxicômanos psicóticos. Pessoas que não se apresentam sob o modo “eu sou toxicômano”. Eles são outra coisa, mesmo se entre outros, tomam um certo número de tóxicos. Encontrei um no hospital, ele estava ali por um assunto de família. Ele faz notar que a questão em sua família era a herança. Como era uma família camponesa, ele repetia todo o tempo “la question c’est les terres” (“a questão são as terras”). E este homem era viciado em éter****. Aí estava claro que o gozo da substância, o éter, que se escreve de outra maneira, o éter que ele inalava, vinha no lugar, era o retorno no real deste gozo extraído do Nome-do-Pai, que era para ele a herança das terras.

Outro sujeito perturbado transportava a droga em uma quantidade de circuitos; era paranoide, então perfeitamente adaptado ao meio dos traficantes, temos que dizê-lo. Ele se sentia perseguido permanentemente. Efetivamente, ele era seguido pela polícia já há alguns anos. A grande lembrança que tinha de seu pai, um impressor, morto quando era jovem, era a imagem de seu pai rodeado de um pó branco que deixava o papel recentemente cortado pela máquina de triturar. Temos o mesmo fenômeno que no primeiro caso: no lugar de um traço de identificação ao pai, um gozo no real. Ele também se rodeava de um pó branco, outro, um que permite não identificar-se, mas gozar.

Digo que este exemplo me parece a contrario porque estes sujeitos não são toxicômanos. Eles formam seguramente parte das manias de Esquirol, as monomanias – são delírios parciais – mas seguramente não são toxicômanos. O gozo deles está perfeitamente limitado, e mais ainda, eles escapam às leis do mercado. Porque eles querem algo preciso. Enquanto a maior parte daqueles que chamamos toxicômanos justamente não querem nada de preciso. É o que constitui o drama da alfândega e da polícia porque segundo as chegadas de mercadoria, segundo as zonas de produção, um tóxico é substituído por outro, em todo caso, em uma muito grande família de derivados dos opiáceos e da cocaína. Bastou que em Medellín se invente o crack para que três meses depois este produto imponha a lei sobre o mercado de Los Angeles.

Aparentemente aquele que se entrega aos estupefacientes é indiferente ao que toma. Toma o que há. Não assistimos neste domínio a reivindicações sobre o tema “Dê-nos nossa droga de antes”. Não é como a Coca Cola: quando ela muda, uma associação de defensores da Coca Cola clássica se levanta: “Dê-nos nossa Coca Cola clássica”. Enquanto aqui o sujeito toma o que se lhe apresenta. E é um drama porque quando a polícia chega a eliminar certos mercados abertos, zonas de produção, outra se apresenta imediatamente, e no fundo isso continua. A idéia é justamente que a ruptura com o gozo fálico suprime as particularidades.

A primeira consequência, então, da pequena frase de Lacan, é a ruptura com o Nome-do-Pai fora da psicose. A segunda consequência que se pode extrair é de uma ruptura com as particularidades da fantasia. Ruptura com isso que a fantasia supõe o objeto de gozo na medida em que ela inclui a castração. É por isso que podemos sustentar com muita segurança que o toxicômano não é um perverso. Não é um perverso porque a perversão supõe o uso da fantasia. Ela supõe um uso muito específico da fantasia. Enquanto a toxicomania é um uso do gozo fora da fantasia: ela não toma os caminhos complicados da fantasia. É um curto circuito. A ruptura com o “pequeno-pipi”, como diz Lacan, tem como consequência que se possa gozar sem a fantasia.

E mesmo que o The Economist tenha querido legalizar as drogas, não parece que se possa esperar maravilhas de uma medida parecida. Porque para legalizar faria falta que o sujeito estivesse concernido pelo fato de que seja legal ou ilegal. Não creio absolutamente – se tomamos como definição da toxicomania “a ruptura com o gozo fálico” – que se possa sustentar que o ilegal seja uma atração para o toxicômano enquanto tal. Para certos toxicômanos pode ser. Isso interessa seguramente aquele que vende sua substância porque isso permite aumentar o preço, mas o toxicômano ultrapassou o ponto onde “legal” e “ilegal” querem dizer alguma coisa.

Quando no Seminário sobre a Ética da Psicanálise o Dr. Lacan diz que “só a Lei nos torna desmedidamente pecadores”, isso supõe que aquele que é desmedidamente pecador, aquele que quer sê-lo, aquele que se interessa pela transgressão, não tenha rompido com o gozo fálico. É inclusive como suplência à inadequação do órgão-símbolo que ele se apóia sobre a lei, para fazer de seu gozo peniano algo fálico. E ainda tornando-se desmedidamente pecador, faz-se o objeto absoluto, se é perverso. Parece-me que implica tomar a sério a observação em que Lacan indica que ele vai mais além do Ideal.

Legalizar a droga tem como consequência apenas querer tratar este flagelo social pelas leis do marcado. Por que não? Mas temos que reconhecer que se limita apenas a isso.

Terceira observação: Parece-me que se pode tratar a toxicomania como o surgimento em nosso mundo de um gozo uno. Enquanto tal não sexual. O gozo sexual não é uno, está profundamente fraturado, não é apreensível senão pela fragmentação do corpo. Enquanto na toxicomania se apresenta como único. Neste sentido está seguramente o futuro. A relação de nossa civilização ao gozo se dará em torno desse ponto.

Interrogado em 1973 sobre as questões preocupantes do futuro, do ponto de vista da psicanálise, Lacan em Televisão, retomando o que tinha dito na conclusão de um congresso sobre a infância alienada, assinalava que o que o preocupava era o crescimento do racismo. Em 1973 essa poderia parecer uma consideração estritamente inatual. Não existia o “fenômeno Le Pen”*****. Nossos pensadores despertavam ainda da embriaguez de maio de 1968. A ordem do dia eram frouxas considerações sobre a liberdade sexual e seus perigos. Grosso modo. E Lacan faz ouvir este som discordante: o grande problema do futuro será esse.

Quinze anos depois estamos infelizmente muito próximos do que ele enunciava. Ele enunciava isto: que em nosso universo de mercado comum, não há apenas a forma “mercado” que unifica os gozos incomensuráveis um ao outro. No fundo o que não suportamos no Outro, é um gozo diferente do nosso. Os ingleses reprovam os franceses que comem rãs, resumindo ali os séculos de inimizade e também de acordos cordiais, os vietnamitas reprovam os chineses que comem cães – é uma injúria especialmente preciosa que resume ela também inimizades extremamente sólidas. Um não suporta o gozo ao qual o outro tem acesso: o gozo da rã, o gozo do cão.

E as drogas tem sido efetivamente a introdução de gozos exóticos sucessivos. A guerra colonial mais paradigmática, a guerra do ópio, foi a imposição pelos ingleses aos chineses do ópio produzido em Bengala a preços inferiores. O que provocou uma epidemia de ópio, um consumo fora de todo limite do ópio na China. Deste ponto de vista o haschich, os opiáceos e a cocaína são a integração do mercado único dos gozos.

E no fundo, sobre este mercado único dos gozos, parece-me que o estupefaciente, se me permitem este atalho, é a outra cara do racismo.

O racismo é o insuportável do gozo do outro. E a forma “Estado” do discurso do mestre deve tentar fazer tão bem como o fez o Império Romano, fazer coexistir gozos perfeitamente diferentes. Quando a religião tornou-se teocrática quer dizer governada pela forma império, mesmo a religião do Deus único podia fazer coexistir gozos diferentes.

Esta via está fechada. Como a forma “Estado” poderá fazer coexistir gozos diferentes sem que se suscite estes fenômenos de ódio racial, é o que está em jogo de forma decisiva. Parece-me que para além da forma “Estado”, o mercado único coloca-se na perspectiva do gozo uno, mais além destes gozos diferentes. É o que faz com que um só país possa ser o produtor de droga para o universo inteiro e produzir uma quantidade suficiente de estupefacientes: não há nenhum obstáculo industrial a isso, a cocaína pode se produzir em quantidade suficiente para satisfazer o consumidor mundial.

Neste sentido é seguramente em outra forma do futuro que a psicanálise tem algo a dizer. É certo, pois, como fez notar Hugo Freda, é o discurso o que, para além da censura, tenta manter o sujeito na via do desejo, única via que pode dar limite ao gozo.

Tradução: Lúcia Grossi dos Santos
Revisão: Elisa Alvarenga
 Notas:
* “Trois remarques sur la toxicomanie”, Quarto 42, Bruxelles, déc.1990, p.69-72.
** Nota da tradutora (N.T.): Lembremos que esta Conferência foi pronunciada em dezembro de 1988 em Bruxelas.
*** N.T.: Trata-se aqui das letras gregas fi minúsculo e fi maiúsculo para diferenciar o falo imaginário do falo simbólico. Ou seja, essa ruptura se escreveria como ausência de inscrição do falo imaginário ou do falo simbólico?
**** N.T.: Em francês há uma homofonia entre les terres e l’éther.
***** N.T.: Laurent refere-se aqui ao crescimento da extrema direita francesa, com ideais xenofóbicos e racistas do tipo : “A França para os franceses”, cujo representante nas eleições presidenciais foi Le Pen.
Eric Laurent

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